Pela primeira vez desde o final de dezembro, nem a cidade de Wuhan, epicentro da pandemia de Covid-19, nem a China registraram novos casos da doença, segundo anunciaram ontem as autoridades locais. No início irresponsável a ponto de censurar as notícias sobre o novo coronavírus que circulavam desde dezembro e de reprimir quem ousasse contrariar a versão oficial que supunha não haver transmissão entre humanos, desde 20 de janeiro o governo chinês deu uma guinada radical. Transformou a luta contra a Covid-19 em sua razão de ser.
Não há como nenhum país do mundo combater o vírus sem entender a estratégia adotada pelos chineses, uma versão extrema das medidas de distanciamento social e mitigação inédita na história das pandemias, a ponto de receber um novo nome: supressão. O objetivo da supressão é, mesmo sem dispor de vacina, eliminar qualquer traço do vírus nas comunidades atingidas. O método para isso são normas draconianas de quarentena, restrição a movimentos e atividades econômicas.
A Covid-19 tem deixado os epidemiologistas perplexos – e pôs em xeque as estratégias de mitigação mais comuns para “achatar a curva” de contágio das doenças respiratórias. O receituário padrão foi resumido numa revisão de 67 estudos, publicada pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos em 2011. Nove deles, concluíram os cientistas, justificavam as barreiras à transmissão e o isolamento dos doentes, além de medidas básicas de higiene, como lavar as mãos.
A medida com efeito mais consistente era usar máscaras. Antissépticos nas mãos apresentaram resultados ambíguos. Vigiar fronteiras teve resultado desprezível. “Há evidência limitada de que o distanciamento social é eficaz, especialmente se relacionado ao risco de exposição”, escreveram os autores. Mal poderiam imaginar que, contra o novo coronavírus, só surtiriam efeito as restrições draconianas, reunidas sob a nova rubrica da “supressão”.
4. Medidas de supressão
A palavra “supressão” entrou para o léxico das pandemias na última segunda-feira, quando um relatório do Imperial College levou o governo britânico a abandonar a estratégia de mitigação que preconizava tolerância com o vírus nas populações menos vulneráveis. Antes do relatório, o objetivo era que 60% dos britânicos contraíssem a doença em sua versão mais leve e, uma vez curados, ficassem imunes. Nesse patamar de contágio, o vírus teria dificuldades para circular na população e não sobrecarregaria os hospitais. O país atingiria um estágio conhecido como “imunidade coletiva”, também objetivo das campanhas de vacinação (leia mais no post de ontem).
Pois o relatório do Imperial College provou que tal objetivo, ainda defendido pelo governo holandês e por certos integrantes da “ala liberal” do governo brasileiro, não passa de uma quimera. Sem nenhuma medida de controle para “achatar a curva” de contágio, diz o documento, o novo coronavírus provocaria sobrecarga nos hospitais suficiente para matar 510 mil britânicos e 2,2 milhões de americanos.
Mesmo no cenário de mitigação mais positivo, a demanda por leitos de tratamento intensivo no Reino Unido superaria em oito vezes a oferta. Haveria, ao todo, 250 mil mortes com a mitigação. Nos cenários de supressão, elas cairiam a entre 9 mil e 40 mil. O documento recomenda distanciamento social para toda a população, isolar os doentes, fechar escolas e universidades.
A dúvida é por quanto tempo. O relatório sugere adotar tais medidas por ao menos três meses. E se o vírus ressurgir depois? Aí seria preciso ativá-las ou desativá-las de acordo com gatilhos, como número de infecções ou demanda nos hospitais. Para funcionar, o sistema precisaria vigorar até haver uma vacina, período estimado em no mínimo 18 meses.
Trata-se, como os próprios autores reconhecem, de uma sugestão impalatável politicamente. “Nenhuma intervenção na saúde pública com efeitos tão perturbadores na sociedade jamais foi tentada antes por um período tão longo”, escrevem na conclusão. “Não está claro como populações e sociedades responderão.”
Entre os próprios cientistas, as opiniões sobre a supressão estão longe de unânimes. “Medidas draconianas foram adotadas em muitos países. Por quanto tempo devem continuar se a pandemia resistir incólume pelo planeta? Como os formuladores de políticas públicas podem saber se estão fazendo mais bem que mal?”, questiona o epidemiologista John Ioannidis, da Universidade Stanford, em artigo provocativo na Stat. Para ele, os números básicos da epidemia ainda são incertos, portanto é impossível conhecer com exatidão a curva de evolução para saber se – para não falar em como – seria possível achatá-la.
“Sabemos o bastante para agir – e é imperativo agir com força e rapidez”, respondeu também na Stat o epidemiologista Marc Lipsitch, da Universidade Harvard. Apesar de admitir as incertezas apontadas por Ioannidis e de reconhecer, em suas próprias projeções, que o novo coronavírus deverá recorrer em novas ondas, Lipsitch argumenta que, nos países onde a epidemia se alastra sem intervenções, ela tem sido insuportável para o sistema de saúde. Há, diz ele, duas opções: distanciamento social de longo prazo ou colapso dos hospitais. “Esperar por um milagre não é uma opção”, afirma.
O exemplo mencionado por Lipsitch é óbvio: a China, onde só a supressão funcionou. Em 23 de janeiro, depois do vacilo inicial, o governo chinês impôs restrições duras em Wuhan e nas províncias de Guangdong, Zhejoang e Hunan. Nos dois dias seguintes, outras medidas entraram em vigor em toda a província de Hubei, Pequim, Xangai e outras 24 regiões. Ao todo, a limitação ao direito de ir e vir foi decretada, em diferentes graus, para mais de 930 milhões de pessoas. Na versão mais comum do que foi chamado de “gestão fechada”, todos foram submetidos ao regime de controle por no mínimo seis semanas.
O protocolo típico envolvia ficar fechado em casa, com autorização para uma única pessoa sair uma vez por semana para reabastecimento, além de exceções especiais. Pessoas em circulação deveriam portar autorizações formais do governo. No retorno, havia verificação de termperatura e desinfecção dos veículos. “É responsabilidade de todos combater o vírus”, diz um adesivo padrão nas autorizações.
Foram implementadas restrições ao horário de funcionamento das lojas e sistemas emergenciais de entrega em domicílio. Aulas foram transferidas para a internet. Elevadores, divididos com faixas no chão para acomodar no máximo quatro passageiros, um em cada canto. Palitos fincados num isopor ficam até hoje à disposição para que se evite tocar os botões com os dedos. Nas filas, chineses passaram a manter distância mínima de um metro uns dos outros.
Exércitos de médicos foram enviados às áreas afetadas. Apenas para Wuhan foram deslocados mais de 40 mil profissionais. Nada menos que 1.800 equipes epidemiológicas, com no mínimo 5 pessoas, operaram na cidade, de acordo com um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS). O trabalho dessas equipes envolvia o rastreamento meticuloso de todos os contatos mantidos pelos infectados.
Entre 1% e 5% dos rastreados testaram positivo para Covid-19 e tiveram de ser isolados. Até 17 de fevereiro, diz o balanço da OMS, Shenzhen rastreara 100% dos 2.842 contatos identificados (2,8% estavam infectados). Sichuan, 99% de 25.493 contatos (0,9% infectados). Guandong, 100% de 9.939 (4,8% infectados).
O resultado da atenção aos detalhes foi constatado num estudo da Universidade de Ciência e Tecnologia Huazhong sobre o recuo da epidemia em Wuhan. O índice que mede a capacidade de disseminação do vírus, conhecido como “número efetivo de reprodução”, ou R, caiu de 3,86 novos contágios por infectado para apenas 0,32. Quando esse número cai abaixo de 1, a epidemia se extingue sozinha com o tempo (como explico neste post). “Estima-se que as intervenções preveniram 94,5% das infecções até 18 de fevereiro”, escreveram os autores. “Medidas consideráveis controlaram o surto da Covid-19 em Wuhan.”
A importância de agir cedo foi verificada noutro estudo, coordenado por Lipsitch. Os cientistas da Universidade Harvard compararam os números da epidemia em Wuhan, onde medidas estritas de controle foram implantadas seis semanas depois de verificada a transmisão local do vírus, aos de Guangzhou, onde as mesmas restrições entraram em vigor apenas uma semana depois do primeiro caso.
Entre 10 de janeiro e 29 de fevereiro, Wuhan registrou uma média de 3.454 pacientes graves, 637 deles exigindo unidades de tratamento intensivo. No pico, 19.425 estavam internados, 9.689 em estado grave, 2.087 em estado crítico. Em Guangzhou, em contrapartida, a média diária de pacientes entre 24 de janeiro e 29 de fevereiro foi de 20 internados e 9 em tratamento intensivo. No pico, só 15 em estado crítico, 38 em estado grave. “Mesmo depois da quarentena de Wuhan em 23 de janeiro, o número de pacientes gravemente doentes continuou a crescer”, escreveram os epidemiologistas.
Nem o empenho detalhista dos chineses foi suficiente para rastrear todo o contágio na epidemia. Um estudo publicado esta semana na revista Science estima que 86% das infecções anteriores às restrições impostas em 23 de janeiro não foram documentadas. “Infecções não-documentadas foram a origem de 79% dos casos documentados”, afirma o estudo. Os pesquisadores da Universidade Huangzhou concluíram que pelo menos 59% dos casos de Wuhan não foram contados no total registrado oficialmente, “incluindo potencialmente casos assintomáticos ou levemente sintomáticos”.
A transmissão assintomática é o principal desafio no combate à pandemia – e a principal justificativa para as medidas draconianas de supressão. “Já que quarentenas resultam num número exponencialmente decrescente de casos, um período comparativamente curto de tempo pode ser suficiente para atingir a extinção dos patógenos, depois do qual é possível relaxar as restrições sem ressurgência”, escreveram Chen Shen, Nassim Taleb e Yaneer Bar-Yam numa crítica ao relatório do Imperial College.
Ainda que apontem deficiências no modelo dos britânicos, os três reconhecem na supressão a única estratégia viável no atual estágio da pandemia. Bar-Yam, em particular, recomenda o uso de um método que se revelou eficaz para combater o surto de ebola nos países africanos em 2014 (cujo resultado pode ser visto numa simulação visual no site do Instituto de Sistemas Complexos da Nova Inglaterra).
Em vez de tentar rastrear contatos individuais, algo inviável em cidades grandes, a proposta é identificar vizinhanças onde o vírus se manifesta, por meio do que Bar-Yam chama de “monitoramento comunitário”. Assim que um contágio é detectado, o local afetado é posto em quarentena, e os habitantes são testados em massa para isolar os infectados. De acordo com a simulação, basta que apenas 50% cumpram as restrições para que haja declínio exponencial nos casos.
Adaptar o método de Bar-Yam para combater a Covid-19 exigiria equipes qualificadas e monitoramento constante por meio de testes ágeis e abrangentes, como na Coreia do Sul (leia mais neste post). Certamente causaria menos transtorno político e econômico que decretar quarentena radical por tempo indefinido. É o tipo de ideia que merece ser debatida, numa luta que exigirá uma mistura de conhecimento, criatividade e paciência – muita paciência.
Fonte: G1
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