O abandono da política

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Por: Lula Miranda

Se abandonamos o terreno da política, depois não poderemos reclamar que ali só nasce mato e erva daninha. Ou seja, que no Parlamento “só tem” lobista, beócio, picareta e aproveitador.

“Eu detesto política” – quem nunca escutou essa frase que atire a primeira pedra. É… existem pessoas que pensam assim. Pode não ser o meu caso. Tampouco, certamente, o seu, prezado leitor. Mas essa é uma frase assim mesmo: “curta e grossa”. E, sem dúvida, ouve-se isso bastante por aí. E tem gente que diz até com certa empáfia/jactância, como se ES tivesse falando a coisa mais sensata e inteligente do mundo – apesar da pobreza de espírito e alienação que essa sentença denuncia.

Muitas pessoas falam sem pensar e algumas agem sem pensar – outras (muitas) até vivem sem exercer essa atividade tão singular e própria aos de nossa espécie. Se refletissem perceberiam que, como já dizia Bertolt Brecht no poema “O Analfabeto Político” [aliás, nunca é demais recomendar a leitura desse autor: leiam sua obra, assistam as montagens de suas peças, sempre que possível], o analfabeto político é aquele que “não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. / Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem de decisões políticas. (…) que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais”.

Abandonamos a política. De modo geral, muito pouco, quase nada, lemos, refletimos, falamos ou debatemos sobre questões importantes da política nacional. Muito pouco, quase nada, participamos da pulsante vida política do país. Do resto do mundo, então… nem pensar. Talvez estejamos demasiado aferrados ao nosso mundo – num âmbito, por assim dizer, umbilical. E o resto… Bom, o resto…

Não participamos das assembleias em nossos sindicatos e demais associações de classe ou de bairro – muitas delas, sejamos honestos, muito mal conduzidas e, muitas vezes, palco de disputas comezinhas de correntes políticas (por vezes dentro de um mesmo partido, numa espécie de autofagia ou de briga entre irmãos). Mas isso não pode servir como pretexto/desculpa para não frequentarmos o nosso sindicato e procurarmos desenvolver em nós a solidariedade e o espírito de corpo (não confundir com “espírito de porco” ou com o corporativismo mesquinho).

Num âmbito mais “doméstico”, não participamos sequer das reuniões de condomínio em nosso prédio – nas quais, muitas vezes, decidem-se coisas que vão influir diretamente em nosso cotidiano ou mexer com as nossas finanças ou patrimônio. Nós não queremos nem saber dessa “chatice” toda. Não é mesmo?

Praticamente já não saímos às ruas a empunhar bandeiras – sejam de partidos ou de ideologias. Participamos muito pouco de fóruns de debates – observe que nas seções de cartas/comentários em sites e por toda a blogosfera predomina, muitas vezes, o pensamento conservador, de direita, a maledicência ou o “diz-que-diz”. A direita começa a perder a vergonha, a colocar as “manguinhas” de fora, e já principia, despudoradamente, a ocupar largos espaços.

Sim, votamos. Decerto. Porém exercemos de forma limitada e precária nossa cidadania. Pois, na maioria das vezes, no dia da eleição, saímos de casa rumo à seção eleitoral sem sequer saber em que deputado ou vereador votar. E, após votar, passados poucos meses do pleito, sequer nos lembramos em quem votamos e, quando lembramos, não nos preocupamos em acompanhar o desempenho do parlamentar nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas ou no Congresso Nacional.

Ou seja, repito, abandonamos a política. Entregamos o espaço do exercício da política àqueles com “senso de oportunidade”, àqueles que tiverem tempo e disposição (na verdade, interesse) em ocupá-lo. Daí que, diante do abandono da política, ela tenha sido de imediato acolhida e “instrumentalizada” por alguns oportunistas e “salafrários” que a utilizam não para seu fim primeiro (o debate pluralista de ideias, a defesa de interesses da coletividade etc.), mas em benefício próprio e de seus interesses, ou de seu grupo. São pessoas não exatamente “vocacionadas” para o nobre ofício da Política; são arrivistas espertalhões que, dotados de “senso de oportunidade”, uma boa lábia e muita cara de pau, ocupam com impressionante desenvoltura esse vácuo por nós deixado.

Como uma deletéria consequência disso, os partidos praticamente não têm inserção na sociedade, esta por sua vez não se sente representada pelos políticos, ou pelos partidos. Culpa dos políticos, dos partidos? Muitos dos sindicatos funcionam como meros cartórios para expedição de documentos e homologações, e perdem, pouco a pouco, a necessária representatividade que os legitima. Culpa dos sindicatos, dos sindicalistas?

Aquele que vota nulo, em branco ou se abstém de votar nas eleições é, sem o saber, cúmplice desse estado de coisas; é um autêntico analfabeto político.

Portanto, se abandonamos o terreno da Política depois não poderemos reclamar que ali, naquele terreno (hoje “baldio”) só nasce mato e erva daninha – ou seja, que no Parlamento “só tem” lobista, beócio, picareta e aproveitador; e que nos sindicatos “só tem” pelegos e gente despreparada.

Assim, não podemos reclamar da eleição (com estrondosa votação, inclusive) de parlamentares como Enéas, Clodovil (que Deus os tenha em bom lugar), Frank Aguiar e Tiririca – para citar os mais “inofensivos”, mas não menos emblemáticos da falência e indigência atual do nosso sistema político. Sem falar naqueles que “roubam, mas fazem”; nos verdugos da ditadura, nos capitães de chacinas, no da serra elétrica (já defenestrado), nos mercadores de mandatos e legendas, nos “sanguessugas”, nos “anões” do orçamento (e da moral), e por aí vai.

É de fato surpreendente, um milagre até, que, nesse ambiente de abandono, sobrevivam, no exercício da Política, pessoas devotadas e ilibadas, como Aldo Rebelo e Inácio Arruda (PC do B), José Eduardo Cardozo, Maurício Rands, Aloísio Mercadante, Ideli Salvatti, Eduardo Suplicy, Emiliano José e Waldir Pires (PT), Ana Arraes e Ciro Gomes (PSB), Pedro Simon (PMDB), Cristovam Buarque e Brizola Neto (PDT), dentre outros poucos. Sim, nem só de urtigas é feita essa nossa “lavoura” já tão devastada; também existem flores que insistem em brotar em meio ao lodo – isso, claro, para não dizer que não falei de flores.

É preciso que retomemos o interesse pelo exercício da política, que lutemos pela dignidade na política [ler Hannah Arendt em “A Dignidade da Política”]. É necessário prestigiar os bons parlamentares e os homens públicos dedicados e incentivar vocações autênticas, aquelas balizadas pelo verdadeiro espírito republicano de servir ao povo e à coisa pública. Antes que seja tarde demais. Antes que o exercício da política seja de uma vez dominado pelos que defendem apenas inconfessáveis interesses privados – quando não, pura e simplesmente, criminosos.

(*) Texto publicado no livro “Carta ao Presidente – Brasileiros em Busca da Cidadania”, Ed. ÔMINIRA, Bahia, 2012. “Make it New” de artigo publicado na Carta Maior em 2007.

Publicado no bahia247 em 15/10/2012

 

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