Por: ANA PAULA LISBOA
Depois do fim do mundo as desigualdades geralmente são amplificadas
25/03/2020 – 04:01 / Atualizado em 25/03/2020 – 07:18
Há certa beleza em acompanhar o fim do mundo ao vivo pra mim, que sempre fui fã do fim do mundo nas telas. Eu já vi o mundo acabar porque as geleiras derreteram, porque a água acabou, chuva, revolução tecnológica, queda de meteoro, fim do sol, invasão extraterrestre, supervírus e tantas outras formas ficcionais que mudaram o mundo.
O que unia todos os filmes, e talvez o que me interessava e continue me interessando de verdade neles, é que em nenhum dos mundos possíveis inventados pela mente humana, a desigualdade perdeu o seu lugar. Pelo contrário, depois do fim do mundo as desigualdades geralmente são amplificadas.
No fim do mundo real o perfil dos casos de morte é definido por idade, sexo e doenças pré-contágio, mas é importantíssimo que se incluam os perfis socioeconômicos dessas pessoas. É só para que os números confirmem o que já se sabe empiricamente: trabalhadores, camponeses, classes populares. No Brasil, sabe-se quem foram os primeiros a contrair a doença e quem foram os primeiros a morrer, quem tem água para lavar as mãos, quem tem dinheiro para comprar álcool em gel, quem pode estocar comida, quem pode ficar em casa, quem tem segurança e espaço em casa para se isolar. É melhor adoecer com fome ou morrer de barriga cheia?
Apesar da morte ser o que nos coloca no mesmo patamar, exposição ao vírus não é a mesma de acordo com a classe social do indivíduo. Isso se agrava quando foi criado no país um movimento político para descredibilizar a ciência, as universidades, a imprensa, a cultura e dar crédito às fake news.
Mas isso todos vocês já sabem. Espero.
O que me espanta mesmo não é a desigualdade em si, mas a necropolítica que permanece mesmo nesses tempos. Mais uma vez são os coletivos e a sociedade civil que estão se mobilizando para achatar a curva, mas com recorte de raça e classe, na segunda cidade com mais casos confirmados no Brasil. Agência de Redes para Juventude, Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, Voz das Comunidades, Movimento Liberdade Ativa, Fórum de Juventude, Amarevê, Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra, Maré Vive, PPG Informativo, Jornal Fala Roça, Maré 0800, Voz da Baixada, Marginal Coletivo, Angu de Grilo, Movimenta Caxias, Projeto Manivela, Tudo Numa Coisa Só, (e tantos outros da capital e da Baixada Fluminense) estão criando estratégias físicas e on-line para resolver as próprias questões. A premissa do “nós por nós” não tem descanso, nem mesmo na pandemia. Pessoas que deveriam estar descansando, cuidando da imunidade, guardando a saúde mental, estão nas ruas porque se não forem eles, não será ninguém. Isso é o fim do mundo!
Desses, eu gosto muito de “Os 12 macacos”, e da premissa de que, mesmo voltando ao passado, a intenção não é mudá-lo, porque já aconteceu, mas a possibilidade de recolher informações para melhorar o futuro. No filme, 80% da população mundial são mortas por um supervírus.
É que o fim do mundo afeta a todos, nada mais será como antes, mas isso não quer dizer que será melhor. Dizem que está pichado num túnel em Hong Kong: “Não podemos voltar ao normal, porque o normal era exatamente o problema”.
Fonte: O GLOBO
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