Canudos resiste

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Texto José Paulo Borges
Fotos Denny Ferreira

No dia15 de agosto, há exatos 100 anos, morria Euclides da Cunha, autor do clássico Os sertões. No norte da Bahia, palco da guerra retratada no livro, a vida continua

Em um fogão a lenha improvisado no quintal de sua casa, no povoado de Alto Alegre, município de Canudos, extremo norte da Bahia, Madalena Antonia Santos Oliveira prepara um bode cozido. De repente, ela olha para o céu e indaga: “Parece que a gente está no meio do mundo, não parece? Existe lugar melhor que o nosso?”. O quintal de Madalena, no meio do mundo, não tem cercas e é rodeado por morros imponentes: Canabrava, Poço de Cima, Cocorobó, Calumbi, Cambaio, Caipã. O único som que se ouve – além do chocalho de algumas cabras e o vento norte que bate com força no telhado da casa – é a voz e a risada dessa mulher, de 59 anos.

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Um pouco mais abaixo, o açude de Cocorobó, formado no final dos anos 1960 pelas águas represadas do Rio Vaza Barris, reina imponente. À beira do açude, um cruzeiro de madeira cercado por um punhado de cruzes brancas impressiona. Tereza de Alexandrino, Vicentão, Timotinho, Leão da Netinha, Pimpona, Chico Ema, Maria Rita, José Beatinho, Donina Maria de Jesus, Manoel Macambira são alguns dos nomes inscritos nas cruzes. Nomes de alguns dos incontáveis sertanejos que tombaram aqui, no coração do Sertão, nos anos de 1896 e 1897 na Campanha de Canudos – um dos episódios mais sangrentos da história do Brasil -, homenageados nesse monumento erguido em 1997 pelo Instituto Popular Mártires de Canudos para lembrar “os cem anos do Massacre de Canudos”. Na época, foram erguidas cem cruzes. Hoje, por causa do vandalismo, principalmente, pouco mais de 50 ainda resistem.

Nos idos de 1897, em plena Guerra de Canudos, esse local encantou o jovem engenheiro Euclides Rodrigues da Cunha, que escreveu: “Não há manhãs que se comparem às de Canudos; nem as manhãs sul-mineiras nem as manhãs douradas do planalto central de São Paulo se equiparam às que aqui se expandem num firmamento puríssimo, com irradiações fantásticas de apoteose”.

Mas no mesmo artigo, publicado no dia 1° de outubro daquele ano de 1897, Euclides da Cunha, correspondente de guerra do jornal O Estado de S. Paulo, logo muda de tom: “Às 10 horas e 52 minutos novos estampidos abalaram os ares e novamente estremeceu a terra em torno de um punhado de valentes transviados; novas bombas de dinamite derramaram a devastação e a morte na zona convulsionada em que lutavam os últimos jagunços …”.

Estátua do beato Conselheiro, cruzes à beira do Cocoboró e Madalena indicando o local onde muita gente tombou: história viva

Antes de eclodir a guerra, a fama de Canudos, então chamado Belo Monte, era a de um lugar onde “corriam rios de leite e as barrancas eram de cuscuz”. Parecia que todo o Sertão queria viver naquele povoado de casebres de taipa e becos estreitos, entrelaçados, onde à noite o povo se reunia para cantar ladainhas e ouvir as pregações de um certo Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, fundador do povoado. Foi nesse cenário que Madalena nasceu, se criou e desde a infância se acostumou a ouvir histórias dos tempos da guerra que durou um ano e mobilizou tropas de 17 estados, culminando na chacina de milhares de índios, mulatos, caboclos, pretos – sertanejos dirigidos pelo beato Conselheiro.

A matança só não foi maior, calcula, porque muitas pessoas se esconderam na Caatinga, que conheciam bem. “O povo sabia onde a cobra morava, por isso, quando a coisa esfriou, voltou todo mundo.” No centro de Canudos, além da Avenida Euclides da Cunha, a referência mais visível ao escritor paulista é o restaurante e pizzaria Os Sertões. Dentro do estabelecimento, nenhum pôster de Euclides, nenhuma imagem da guerra. João Batista Alves Gama, 44 anos, o dono, explica que o nome de seu restaurante é sim uma homenagem ao escritor. Diz também que há um bom tempo vem tentando destrinchar o calhamaço euclidiano. “É meio complicado. A gente tem de consultar o dicionário toda hora.” Apesar da dificuldade, João garante que não vai desistir da leitura.

Um pouco mais distante dali, o que não falta nas paredes da sala da professora Josileide Valença Varjão, 34 anos, diretora da Escola Estadual Luís Cabral, são reproduções de quadros da guerra. Euclidiana assumida – ela já atravessou Os sertões pelo menos umas três vezes -, Josileide queixa-se do trabalho que tem para despertar nos alunos interesse pela vida e pela obra do escritor. “A gente faz oficinas, realiza seminários, mas eles só participam porque são atividades obrigatórias.”

Segundo a diretora da Escola Luís Cabral, seria bom se existissem na cidade grupos como a extinta Assepac — Associação de Estudos e Pesquisas Antônio Conselheiro. “Na década de 1990 participei desse grupo, que reunia estudantes e pessoas interessadas em nossa história. Pena que as pessoas se dispersaram.” Mesmo com a obrigatoriedade de ensino da história do episódio histórico nas escolas municipais, lamenta Josileide, “as dificuldades para motivar os jovens de Canudos para um evento tão importante não são poucas”.

Mas é no Jardim Euclidiano, no Memorial Antônio Conselheiro, que a presença de Euclides da Cunha surge com mais nitidez. Localizado na área externa do Memorial, o Jardim Euclidiano é um pequeno santuário onde estão abrigados exemplares das plantas catalogadas e brilhantemente descritas por Euclides em Os sertões. São umbuzeiros, umburanas, xiquexiques, catingueiras, mandacarus, bromélias, angicos, favelas e, especialmente, os quipás, uma espécie de cacto dotado de espinhos extremamente agressivos. Além dos chamados jagunços, os quipás, sem dúvida, foram os mais temíveis adversários enfrentados pelo Exército brasileiro durante a guerra na Caatinga.

Fonte: Campo Aberto

 

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