Crise da saúde global suscita questionamentos sobre a forma de viver em sociedade e de os indivíduos pensarem o mundo, a política e a economia
Fernando Eichenberg, especial para O Globo
22/03/2020 – 04:30 / Atualizado em 23/03/2020 – 09:31
A crise de saúde global está longe de terminar, mas já pairam no ar projeções sobre o poder da epidemia de suscitar interrogações sobre a forma de viver em sociedade e de os indivíduos pensarem o mundo deste início do século XXI. Intelectuais ouvidos pelo GLOBO não têm dúvidas de que a experiência provocada pelo coronavírus deflagrará novos questionamentos existenciais e humanistas, bem como mudanças de governança política e de modelos econômicos.
Para o sociólogo Michel Wieviorka, diretor de pesquisas na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, a pandemia revelou a dimensão do poder da China no mundo.
— É um fenômeno importante : a dependência do mundo inteiro em relação à China. Os medicamentos que utilizamos são produzidos com substâncias originadas da China. Os automóveis que conduzimos dependem em 40% da indústria chinesa — disse. — Muitos países começam a se questionar sobre seu estado de desindustrialização e sua dependência de Pequim. A crise sanitária se mistura a outras, do petróleo, financeira. Vamos entrar em um período muito complicado, e é provável que saiamos com outras concepções de vida econômica. Há também um retorno da confiança na ciência e na medicina, um retorno da razão.
Reorganização econômica
A recente virada de rumo do presidente francês, Emmanuel Macron, é invocada por ele como um embrião de mudanças futuras:
— Macron teve uma política, sobretudo, neoliberal, e agora diz que é preciso confiar no Estado e que o mercado não pode regular tudo. Queria aprovar a toda velocidade uma reforma da aposentadoria, e agora diz que não há pressa. Impôs uma reforma do seguro-desemprego, socialmente brutal, e toma medidas que a anulam. Haverá muita reflexão sobre nosso humanismo, nossas relações interpessoais, mas também um intenso debate em torno de nossa organização econômica, do que se espera dos sistemas de saúde, de educação. Certas receitas neoliberais serão esquecidas. Isso não quer dizer que se vai retomar métodos do passado, mas que se irá na direção de outras fórmulas de redistribuição — prevê Wieviorka.
Na política, a crise, na sua opinião, provocará reflexões comparadas entre a democracia e o autoritarismo:
— Se olharmos apenas para a experiência chinesa, se dirá que o país tomou medidas brutais, mas que permitiram absorver o mais rapidamente possível a epidemia. Então, viva o autoritarismo. Mas basta olhar o que se passa no Irã para perceber que o autoritarismo também pode ser totalmente ineficaz. A Coreia do Sul e a Itália tomaram medidas enérgicas, e nem todos os regimes democráticos se igualam. Haverá reflexões sobre a complementaridade da democracia e do Estado de Direito, e da capacidade do Estado de agir.
Wieviorka, que define esta crise como um “acontecimento de importância histórica”, avalia ainda que as mudanças dependerão da emergência de novos agentes.
— Na França, as forças políticas são as extremistas, de direita e de esquerda, e um poder estabelecido que mostrou seus limites. Quais serão os atores políticos, intelectuais, culturais de uma renovação? Hoje, não saberia dizer. Mas, se não houver, rumaremos para catástrofes autoritárias e nacionalistas.
O filósofo Luc Ferry sinaliza um possível fortalecimento dos nacionalismos e da xenofobia como resultado da crise:
— Todos os governos, incluídos os mais democráticos, fecham as fronteiras, o que só pode reforçar os soberanistas de extrema esquerda e direita. Os nacionalistas se deleitam da situação atual, convencidos de que lhes dá razão. Aproveitam para nos vender seus discursos contra a globalização e pelo fechamento das fronteiras. O isolamento se torna o grito universal de guerra. E o presidente Donald Trump fala de um “vírus chinês”, o que não prenuncia nada de bom e se revela de uma rara tolice..
Política e ciência
Ferry acusa os governantes de reagirem tardiamente à crise, o que não teria ocorrido por acaso. Para ele, o político do futuro não poderá mais ser um ignorante científico:
— Nosso políticos, não entendendo nada do que se passava no plano científico, tiveram semanas de atraso em relação à realidade da epidemia, o que se traduzirá, infelizmente, em centenas ou mesmo milhares de mortos. Um político deveria ter, sem ser um especialista, um mínimo de conhecimento para não ser totalmente pego de surpresa em uma situação como a atual. Infelizmente, a principal bagagem de nossos governantes é a comunicação e a sociologia eleitoral.
Para ele, o confinamento provocado pelo coronavírus destacará a importância da sociabilidade do ser humano:
— Assim como a internacional revolucionária de Maio de 68 era de uma incrível miopia em relação aos efeitos desastrosos do comunismo, o isolamento forçado na esfera privada é deletério. Amo a família, espaço de uma admirável sacralização do humano e ligada à história do casamento pelo amor. Mas nós somos seres sociais, e o confinamento nos mostra de forma brutal o quanto a dimensão social de nossas existências é essencial.
Para o pensador Michel Maffesoli, esta crise marca o fim do “mito do progresso” e a “saturação da prevalência da economia e do materialismo”. Sua tese é a de que a crise da modernidade se manifesta agora de forma violenta.
— Hoje, há o retorno do trágico, que na filosofia grega quer dizer “sem solução” — o contrário do mito progressivista teorizado no século XIX. A fórmula correta é: “Só se comanda bem a natureza obedecendo-a”. Na minha opinião, a manifestação deste epidemia indica que não podemos mais dominar a natureza, mas sim viver com ela. Tudo o que desejamos dominar se revolta.
Outra consequência, segundo ele, está relacionada a outro grande valor da modernidade: o economicismo. A crise promoverá o retorno do “localismo”, disse Maffesoli:
— Para mim, o economismo da globalização está na raiz da difusão da epidemia. Quando esta crise passar, haverá uma volta da “proxemia”, a proximidade, das solidariedades locais, e o surgimento de novas formas de generosidade. O que não é mais longínquo vai predominar: não mais uma sociedade globalizada, mas um reencontro com o ideal comunitário — vaticina.
Na governança política, Maffesoli prevê que a atual “falência das elites” favorecerá a emergência de novas formas de organização sustentadas na horizontalidade, não mais na verticalidade do poder.
— Uma época dura entre três e quatro séculos. Entre elas, há períodos, que se estendem por algumas décadas. Neste período que estamos vivendo, os valores modernos estão cessando. Uma outra escala de valores está nascendo. É um tempo de aprendizado e, ao final, poderemos chegar a uma outra concepção de relações sociais e entre países.
Fonte: O GLOBO
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