Cia teatral farinha seca encena mar lírico de Nelson Rodrigues

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Foi depois de ter seis indicações para o Prêmio Lázaro Ramos, no V Festival Intermunicipal de Teatro Amador (FITA), das quais levou três troféus, que a Cia. Teatral Farinha Seca iniciou, em 2008, o processo de montagem para o espetáculo Senhora dos Afogados, peça mítica de 1947 do dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980). Para a montagem, a Companhia optou pelo 3º e último ato – a tragédia é dividida em três , e lançou mão dos espaços convencionais para experimentar nova linguagem naquele que, talvez, tenha sido o melhor espetáculo do grupo.

Há um mês em cartaz no auditório do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Euclides da Cunha, Senhora dos Afogados surpreende pela inovação fotográfica e lírica. A tragédia, cujo enredo se passa nas proximidades do mar, traz a família Drummond e as sucessivas tragédias que acometem seus membros para o centro da cena. A fidelidade conjugal de 300 anos é abalada em meio às circunstâncias do desejo transgressor nascido entre os membros daquela família tradicional, oriunda de um passado obscuro.

Neste espetáculo, as impressões pessoais de cada espectador se tornam mais agudas em consequência da quebra da quarta parede (assim chamado a divisão entre ator e plateia como se as cenas estivessem se passando no interior de uma sala, de um quarto) e ele, o espectador, é convidado a fazer parte do grupo de curiosos vizinhos que rondam a malograda vida dos Drummond.

O mar – vivo e manipulador -, pois ele é também personagem, alcança seu lirismo quando é posto em cena pelo corpo dos seis atores que formam o elenco. E não basta dizer sobre a força poética da luz, nuançada entre o claro/escuro, vermelho/azul, e da construção da música, produzida pelo canto remoto feminino e, ainda, o som gutural dos ventos que sopram sobre o Café do Cais, onde o 3º ato é ambientado, feito pelos próprios atores.

Para o espectador Inamar Coelho, Senhora dos Afogados deixa a platéia anestesiada. “A farinha seca é composta por alquimistas, já que transformam dificuldade em arte. Aliás, eles respiram arte. Tem que ver. Os gestos, as expressões, as falas, as vozes, a luz, o som, tudo em simetria com a estética que caracteriza a arte. Falar do texto de Nelson Rodrigues só é necessário, neste caso, para mostrar a ruptura operada pela Farinha Seca no sentido de deixar de lado o erotismo e/ou a pornografia, e até mesmo o dramalhão, que vários outros preferiram fazer emergir do texto, para exibir, em um ato, toda a arte possível, nele inerente. Falar dos atores, do mesmo modo, só é possível para elogiar sabendo que as palavras, quase sempre, não serão suficientes. A Farinha seca é um tapa na cara da sociedade: sem teatro, sem apoio, sem verba, sem incentivo, sem platéia, sem… fazem arte da melhor qualidade. Senhora dos Afogados é uma experiência ímpar”, disse emocionado.

A peça é atemporal e moderna, e atravessa a estética rodriguiana com sutileza e radicalidade. Entre um ensaio e outro, o diretor Alfredo Junior conversou com o Sertão Acontece e falou sobre a montagem e os resultados obtidos no seu mais novo trabalho no teatro.

Sertão Acontece – Como surgiu a ideia de montar Senhora dos Afogados?
Alfredo Junior – A partir dos bastidores da turnê da peça A Máquina, onde nós conversávamos sobre a necessidade de trazer para o teatro temas profundos que mexessem com a libido do elenco e, ao mesmo tempo, perturbasse os sentimentos mais obscuros do nosso espectador. Daí começamos a fazer uma pesquisa sobre a sexualidade. Ora pelo corpo do ator, extraindo seus instintos de dentro para fora – o que é essencial para o teatro -, ora pelo estudo do texto, através de Plínio Marcos, João Ubaldo Ribeiro e Yukio Mishima. E por fim, chegamos à obra de Nelson Rodrigues, que respondeu com louvor a todos os nossos anseios. A leitura que fizemos de Senhora dos Afogados nos revelou uma faceta deste dramaturgo que nós desconhecíamos.

S.A – Por que a opção de deixar a plateia em círculo?
A.J – No texto Senhora dos Afogados há uma interferência constante dos vizinhos na vida íntima da família Drummond, e eles são o elemento de ligação entre os fatos ocorridos no passado, isto é, nos dois atos anteriores. Então, como o nosso projeto passeava por uma base experimental, achamos por bem envolver o público, dando-lhe uma personagem dentro do próprio enredo, sem aviso prévio, claro [risos]. E, ao entrar na atmosfera da peça, os espectadores se tornam invasores das intimidades dos Drummond.

S.A – A peça Senhora dos Afogados é feita em três atos, no entanto, vocês fizeram apenas um, o terceiro. Por quê?
A.J – Não queríamos fazer modificações no texto de Nelson Rodrigues, e o terceiro ato era livre dos demais, não precisava de grandes explicações depois de exposto separadamente; ele é a síntese de toda a trama. Quem sabe não surja a oportunidade para fazermos a peça na íntegra, com as quatro horas de duração, em uma arena montada na Praça de Eventos…? [risos].

S.A – A peça está em cartaz há um mês. Há dificuldades para deixar uma montagem em temporada?
A.J – Muitas! Em primeiro lugar porque não temos patrocínio. Segundo que, para cada apresentação, temos muitas despesas.

S.A – E o público, tem comparecido?
A.J – De Euclides, não. Porém, recebemos muitas visitas de pessoas vindas de outras cidades.

S.A – Quanto à receptividade das pessoas que viram o espetáculo, tem sido positiva?
A.J – Sim. O mais importante é que conseguimos extrair do público toda a espécie de sentimento: pudor, ódio, nojo, inveja, compaixão, prazer… e por aí vai. E tudo isso nos tem ajudado na maturação do nosso próprio texto.

S.A – Vocês estão escrevendo uma peça?
A.J – Sim, desde o ano passado estamos trabalhando na redação de uma peça num trabalho colaborativo. Todos metem o dedo no angu [risos]. Dá trabalho, mas teatro não é, ao contrário do que muitos pensam, atividade de quem não tem o que fazer. Ninguém brinca durante nove anos consecutivos com tanto sucesso…

Auditório do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Euclides da Cunha
Sábado (23/05), às 21h
Domingo (24/05), às 19h
R$ 2,00

 

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