Na caatinga brasileira existe uma árvore que todo sertanejo conhece. É o umbuzeiro, batizado de a árvore sagrada do sertão.
Numa região no norte da Bahia, famosa pela guerra de Canudos, o Globo Rural encontrou comunidades que transformam em doces o umbu, fruto do umbuzeiro.
Semi-árido baiano. A paisagem é típica: a caatinga, as cabras soltas no fundo de pasto e um umbuzeiro, batizado de a árvore sagrada do sertão. Quem deu esse título ao umbuzeiro foi o escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, clássico da nossa literatura que narra a guerra de Canudos.
A estrada que parece não ter fim leva a Uauá, local onde ocorreu a primeira batalha da guerra de Canudos. As cenas são do filme de Sérgio Rezende. De um lado, estão os seguidores de Antonio Conselheiro. Do outro, está o Exército. O ano é 1996.
No filme em que José Wilker interpreta Antonio Conselheiro, o confronto de Uauá mostra que os partidários do beato venceram os soldados da recém proclamada república do Brasil.
No livro Os Sertões, Euclides da Cunha escreveu: Uauá figura-se um local abandonado. É um arraial com duas ruas que desembocam numa praça irregular. Hoje, o arraial virou uma cidade de 30 mil habitantes e a praça já não é mais irregular. No lugar, muito bem cuidado, fica a igreja matriz.
Mas a tradição não abandonou Uauá. A boiada ainda cruza a cidade. E o umbuzeiro, aquela árvore imortalizada por Euclides da Cunha, continua sendo uma das principais fontes de renda do sertanejo.
O umbuzeiro é uma planta típica do Nordeste. É parente da manga e do caju. Pode chegar a seis metros de altura. Tem copa larga. Os frutos são redondinhos e bem suculentos. Mas o que chama a atenção nessa planta são as raízes modificadas, as túberas ou batatas.
O seu Marcelino é craque em achar onde estão as batatas. “Essa é a batata do imbu e tem água”, disse.
A batata do umbu, ou imbu, é um reservatório de água para a árvore. Nos longos períodos de seca, a planta perde todas as folhas, mas sobrevive graças às batatas. Por isso, é tão preciosa numa região que sofre tanto com a falta de chuva. Os índios chamavam o imbu de árvore que dá de beber.
“Quando a gente andava no mato, no tempo do meu pai, caçando e estava com sede, ele dizia assim: está com sede? Eu respondia que estava. Então, vamos ver se não acha água. Aí, só fazia bater com machado e no lugar que roncava, tirava um cavador e logo arrancava uma ou duas. Aí, ele rapava bem rapadinho. Espremia na mão mesmo. Ali fazia água que tanto a gente bebia como comia com farinha”, contou seu Marcelino.
A água da batata do umbu lembra água de coco quando o coco não está muito doce. É gostosa.
Mas é mesmo o fruto que movimenta vida de muitos agricultores rurais de Uauá. No lugar fica a sede da Coopercuc, Cooperativa de Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá. Essas três cidades ficam próximas, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador. A cooperativa foi criada em 2004 e envolve 16 comunidades rurais. Transforma umbu em doces e mudou a vida de muita gente.
“Antes trabalhava na lavoura de feijão, milho, mandioca, criava animais, cabra e ovelha”, falou o agricultor José Gonçalves.
Zé Gonçalves, o Gigante, cuida do estoque da cooperativa. “Hoje, eu tenho uma casinha. Não é grande, mas é minha. Eu também tenho minha moto que faltam duas prestações ainda”, falou.
Este ano, a Coopercuc processou 140 toneladas de fruta. Os cooperados fizeram doce de maracujá e banana. Mas o produto principal é o doce de umbu, como contou a agricultora Luzineide Batista. “Tem o cremoso normal e o cremoso light, com 30% a menos de açúcar no que a gente chama de normal. Na verdade, é o light porque é mais o gosto do europeu”, esclareceu.
A Luzineide fala do gosto do europeu porque a cooperativa exporta para a França, a Itália e a Áustria. Organizações não governamentais desses países fizeram um investimento de R$ 300 mil para a construção das instalações e da infra-estrutura de produção.
A cooperativa conquistou o Ecocert, certificado da União Européia para produtos orgânicos, e o selo da Slow Food para produtos de cultura alimentar dos povos tradicionais.
A comercialização dos produtos da Coopercuc é diversificada. Vinte e cinco por cento são exportados, outros 25% são vendidos em feiras e supermercados de São Paulo, Juazeiro, Petrolina e Salvador. O restante, ou seja, metade da produção total, vai para a merenda escolar de 13 cidades do sertão baiano.
Foi realizado um encontro de quem quer saber como se faz para transformar uma fruta em vida melhor. O evento reuniu 50 agricultores que vivem em várias partes do semi-árido nordestino, como a dona Vera Costa. “Eu moro em Buriti Bravo, que fica no sertão do Maranhão”, falou.
Todos eles trabalham com beneficiamento de frutas da caatinga. Eles querem saber detalhes desta experiência da Bahia.
Pelos cálculos da cooperativa, a renda das famílias que fazem esse trabalho aumentou 30%. Antes, elas vendiam o fruto para atravessadores. Agora, recebem pelo produto beneficiado. No encontro, o umbu não é novidade pra ninguém.
Elton Barbosa coordena uma associação de agricultores em Porteirinha, no norte de Minas Gerais. “A gente trabalha só com a polpa de umbu. Aqui, eles têm toda uma diversidade de todos os produtos com umbu”, explicou.
Na fábrica em Uauá é feito o doce em corte. Já a geleia e a compota são feitas nas 16 mini-fábricas construídas nas comunidades.
Na região da caatinga, a colheita é feita bem cedinho para aproveitar os horários menos quentes do dia. Às 5h30 já começava a movimentação na casa da dona Neuza. A família sai à procura do umbu.
Antes de ir para o campo a dona Neuza Barbosa dá de comer para as galinhas.
O marido dela, o seu José, cuida do rebanho de ovelhas. Além da cata do umbu, a família vive da criação, com animais deles e de parentes. A dona Neuza e sua cunhada seguem para o curral, tirar o leite das cabras. Ela é habilidosa e tem uma técnica curiosa para prender as cabras. A leiteira vai ficando cheia. Então, é hora de voltar para casa.
A dona Neuza arruma a neta para ir à escola e prepara um café da manhã caprichado. Na refeição não pode faltar o cuscuz com ovo. Depois disso, ela, o marido com o netinho mais novo, o filho e um cunhado partem para o meio do mato.
Logo aparece um pé carregado, apesar de já ser o fim da safra, que vai de janeiro a abril. Cada um encontra um lugarzinho para fazer a colheita. Quem ainda não trabalha, saboreia o gostinho meio doce e meio azedo da fruta. As cabras vão chegando aos poucos. Os animais são aliados na hora de formar o caminho até o umbuzeiro e adoram comer umbu. A colheita vai direto para a mini-fábrica.
Já de volta para casa, dona Neuza contabiliza os ganhos com a cooperativa. “Com o dinheiro eu arrumei a casa, aumente um quarto e fiz o banheiro que não tinha. A geladeira mesmo, se fosse esperar pelo meu marido, eu nunca iria ter. Era difícil. Eu sempre disse que a geladeira seria a primeira coisa que compraria quando tivesse energia. Graças a Deus, deu para comprar com essa renda”, comemora.
Em outra comunidade é prepara a geleia. Quem ensinou foi a dona Jovita da Cruz. Ela está com 65 anos. A aparência é um pouco frágil, mas ela dá duro na lida e surpreende quando chega no pé de umbu.
O umbu está espalhado por toda árvore. Mas a dona Juvita prefere os frutos do alto. “Deus me ajuda a subir no umbuzeiro. Deus me leva pra onde eu quero. Eu não tenho medo de cair”, disse.
Os pés vão procurando com cuidado o galho certo. E a tarefa sempre encanta a corajosa dona Juvita. De fruto em fruto, ela enche a sacola. Para alívio da equipe de reportagem, finalmente desce do umbuzeiro.
A dona Juvita é responsável pela elaboração de um documento informal que estabelece a maneira correta de fazer a colheita do umbu. Há dez anos, ela pediu ao filho dela para escrever uma carta. Essa carta foi enviada ao Ibama na tentativa de fazer com que os coletores da região adotassem as práticas dela.
O que a dona Jovita queria é que o pessoal colhesse a fruta com delicadeza. Sem ficar sacudindo a árvore. “Sacode com força e o umbu verde cai. Cai a folha. Destrói tudo”, esclareceu.
De fazer polpa e doce de umbu, dona Juvita entende. Ela é uma das criadoras das receitas que hoje são usadas pela cooperativa. Para fazer a geleia, ela conta com a ajuda da filha Maria Elenita, que vai lavando os umbus enquanto ela muda o figurino. “Sempre quando a gente vem do mato, do trabalho, que chega para trabalhar, a gente tem que tomar um banho e trocar de roupa”, justificou.
Jaleco, máscara e luva. Em cada mini-fábrica trabalham 12 mulheres em turnos diferentes. Para garantir os certificados internacionais, as regras de higiene são rigorosas. Os umbus vão para o fogo. Depois, passam pelo escorredor. O sólido vai para um balde. O líquido é a base da geleia e volta pro fogo.
A dona Juvita coloca o açúcar orgânico. À parte, pega os umbus cozidos e vai mexendo bem na peneira. O que cai no balde também será usado na geleia.
Quando a calda ferve, elas adicionam três colheres da polpa e deixam lá, mexendo de vez em quando. Verificam se já está no ponto certo. Mais uma vez, passa pela peneira.
Com a geleia pronta, é só encher os vidros e etiquetar. O Egnaldo Xavier, aquele que deu palestra para os grupos de outras regiões, verifica como está o produto pronto e conta qual a maior dificuldade na hora de tirar a mercadoria.
“Como a gente tem um acesso bastante difícil, nossas estradas são ruins, não tem transportadora na região e algumas transportadoras não transportam vidros. Às vezes, um pedido é menor do que o custo de entrega”, reclamou Xavier.
“Hoje, a gente comercializa pouco mais de 200 toneladas de produtos prontos. Mas com a estrutura que a gente tem, temos capacidade de processar em torno de 500 e 600 toneladas de produto”, explicou o presidente da cooperativa, Jussemar da Silva.
Não faltam espaço e vontade de crescer nem planos.
Fonte: Globo Rural
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