A desorientação política que tomou conta do Palácio do Planalto e levou à troca de dois ministros da Saúde em menos de um mês pode ter um impacto avassalador na resposta governamental à epidemia de covid-19 – o maior desafio de saúde pública já enfrentado pelo Brasil. Especialistas dizem que a crise revela o despreparo do atual governo para lidar com a pandemia e pode provocar um total colapso sanitário no País. Eles temem que o novo titular da pasta ponha fim ao isolamento social, como quer Jair Bolsonaro, levando a um vertiginoso aumento do número de casos e mortes.
“Essa política está matando pessoas”, diz o epidemiologista Roberto Medronho, coordenador da força-tarefa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) contra a covid-19. “A mudança (de ministro) é absolutamente inoportuna, inconsequente e inconcebível: jamais poderia acontecer neste momento, não leva em consideração as consequências letais, e não tem nenhuma razão lógica”, diz o especialista.
Como não há vacina nem tratamento específico para a covid-19, as únicas medidas reconhecidamente eficazes contra o novo coronavírus são o isolamento social e a lavagem frequente das mãos. As iniciativas são recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e adotadas em todos os países do mundo no enfrentamento da doença – mesmo no Reino Unido e nos Estados Unidos, onde houve uma resistência inicial dos respectivos governantes. Ainda não há evidências científicas sólidas da eficácia da cloroquina no tratamento da covid; o outro grande ponto de disputa de Bolsonaro. O presidente quer que o ministério recomende o uso da droga no início da infecção, uma medida que não tem o respaldo da OMS e não foi aceita por Henrique Mandetta e Nelson Teich.
Para os especialistas ouvidos pelo Estadão a ambiguidade do discurso governamental foi o maior empecilho para que houvesse uma adesão mais consistente da população brasileira às medidas de isolamento e muito menos apoio para um eventual lockdown nas cidades mais afetadas. “A consequência direta é o abandono do isolamento social, a única estratégia eficaz no combate à pandemia”, afirma Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein.
“Com as trocas no ministério e a ambiguidade do discurso fica muito difícil engajar a população. Isso compromete não só o combate à pandemia, mas também às outras doenças, como cardiovasculares e oncológicas, por exemplo.” A mesma questão foi levantada no Estadão nesta quinta-feira por Jamal Suleiman, infectologista do Hospital Emílio Ribas. “Quando tem esse tipo de dicotomia, acontece de a pessoa ouvir aquilo que for mais confortável.”
Para Mario Scheffer, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, não houve uma coordenação nacional nem com o ministro anterior da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ele afirma que essa falta de estratégia está na raiz das dificuldades no enfrentamento à pandemia.
“Muitos dos problemas dos Estados e municípios na falta de insumos, respiradores e equipamentos de proteção, baixa expansão dos leitos de UTI, dificuldade de contratação de médicos e profissionais têm a ver com a ausência de diretrizes, de ações nacionais e liberação insuficiente de recursos pelo Ministério da Saúde”, diz o professor da Universidade de São Paulo (USP).
Sem coordenação
Enfermeira especializada em gestão de saúde e integrante da força-tarefa da UFRJ, Crystina Barros concorda com o colega. “Os municípios estão agindo como podem, mas sem suporte, sem uma rede coordenada como deveria ser”, sustenta. “O ministério deveria ser o grande articulador, mas, na medida em que isso não é possível, perdemos uma oportunidade de gestão eficiente de recursos, leitos, profissionais e medicamentos que poderia salvar vidas.”
Especialistas temem que a posição contrária à ciência adotada por Bolsonaro tenha um impacto negativo na escolha do novo ministro. “Com suas qualidades e defeitos, os dois ministros (Mandetta e Teich) estavam ouvindo a ciência, estavam tentando adotar políticas que fazem sentido do ponto de vista científico”, avalia o epidemiologista Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas. “Mas eles não conseguem se manter no cargo por pressão do governo, representado pelo presidente, para que não se ouça a ciência. O que estamos vivendo é um embate constante entre a ciência e a negação da ciência e acho pouco provável que o governo consiga um ministro da Saúde respeitado por seus pares que se submeta a negar a ciência.”
A escolha de um ministro da Saúde que não siga as orientações da OMS e da comunidade científica internacional pode ser desastrosa para o País. “A saída de Teich anuncia o pior”, aponta Mario Scheffer. “Se o próximo ministro se agarrar ao fim da quarentena e ao uso generalizado de cloroquina, sabidamente ineficaz, teremos uma tragédia sanitária. Serão milhares de mortes que seriam evitáveis, em proporções muito maiores do que a pandemia já impõe.”
MSN/ESTADÃO
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