O presidente também costuma lembrar realizações de suas gestões passadas e o impeachment de Dilma Rousseff, que é tratado como golpe
Por Marlen Couto e Luã Marinatto — Rio de Janeiro
Enquanto enfrenta sucessivas crises desde que tomou posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mantém uma retórica de campanha eleitoral, em um movimento que se intensificou após os atos golpistas de 8 de janeiro. Um termômetro dessa estratégia são as constantes menções ao antecessor, Jair Bolsonaro, e a reedição da ideia de “herança maldita”, expressão usada em 2003 para se referir ao legado do governo Fernando Henrique. Um levantamento do GLOBO em discursos, pronunciamentos, entrevistas e publicações nas redes sociais mostra que, desde a posse, o petista fez referências diretas ao adversário na campanha do ano passado em pelo menos 20 ocasiões. É como se Lula voltasse a artilharia contra Bolsonaro uma vez a cada dois dias, em média, num ritmo que acelerou após as cenas de vandalismo em Brasília.
O presidente também costuma lembrar realizações de suas gestões passadas e o impeachment de Dilma Rousseff, que é tratado como golpe. Recentemente, Lula passou ainda a escalar as críticas ao Banco Central (BC), instituição comandada por Roberto Campos Neto, indicado por Bolsonaro, e cuja autonomia foi aprovada pelo Congresso em 2021.
Nesta quarta-feira, Lula classificou Bolsonaro, sem citá-lo nominalmente, como o “responsável maior” pelo vandalismo nas sedes dos três Poderes, em virtude de “toda a pregação de ódio, indústria de mentira, de notícia falsa que aconteceu nesse país nos últimos quatro anos” — além disso, acrescentou que assumiu o cargo e encontrou um “governo completamente destruído”, imagem à qual já recorreu outras vezes. Dois dias antes, na posse de Aloizio Mercadante no BNDES, o presidente já havia dito que, durante o governo Bolsonaro, o país viveu “um processo de mentira tresloucada”. São comuns também falas nas quais se refere ao antecessor como “genocida” ao tratar da pandemia de Covid-19 e da crise vivida pelos ianomâmis, em Roraima.
Já a ofensiva relativa ao BC, embora já estivesse pincelada na primeira quinzena de governo — “a única coisa que não é tratada como gasto neste país é o dinheiro que a gente paga de juros para o sistema financeiro”, discursou em cerimônia na Caixa Econômica em 12 de janeiro —, ganhou fôlego nos últimos dias, com críticas constantes à independência do órgão e ao patamar da taxa básica de juros. Lula chegou a chamar Campos Neto de “esse cidadão que foi indicado pelo Senado”, acrescentando em seguida que caberia à própria Casa “trocar o presidente do Banco Central”.
Em meio à subida de tom do presidente, aliados têm atuado para tentar amenizar a situação. Ministro da Fazenda, Fernando Haddad elogiou a ata “amigável” do Comitê de Política Monetária (Copom), divulgada na terça-feira pelo BC. Já Alexandre Padilha, titular das Relações Institucionais, assegurou nesta quarta que não há qualquer debate no governo sobre alterações na independência do órgão.
À procura de uma marca
Em um momento no qual o governo tenta construir uma marca, a lembrança de indicadores de gestões petistas e suas realizações também continua a ser adotada nos discursos, tal qual normalmente ocorre nas campanhas eleitorais. Depois de enfrentar a ação golpista, uma crise militar e a questão humanitária ianomâmi no primeiro mês de mandato, Lula tenta sair da defensiva e busca uma agenda positiva para os primeiros cem dias de sua nova gestão. Um exemplo é o relançamento do Minha Casa Minha Vida, previsto para a próxima semana. O mapeamento de obras paradas, porém, ainda está em andamento.
Em reunião no Palácio do Planalto com parte da base do governo, nesta quarta, Lula cobrou que seus ministros e líderes no Congresso — Randolfe Rodrigues (Rede-AP) —, na Câmara — José Guimarães (PT-CE) — e no Senado — Jaques Wagner(PT-BA) — resolvam as questões que forem apresentadas à administração petista:
— Já estamos há um mês e dez dias no governo. Não tem mais por que a gente não estar resolvendo todas as demandas que apareceram para o Padilha, o Jaques Wagner, o Guimarães, o Randolfe, para os líderes dos partidos que estão participando dessa frente parlamentar de sustentabilidade para a nossa democracia.
Lula também defendeu a retomada de obras e disse que não é preciso “pedir licença para governar”:
— Confio que a economia vai voltar a crescer, depende muito de nós. A gente não tem que pedir licença para governar. Não tem que tentar agradar ninguém, tem que agradar o povo brasileiro que acreditou em um programa que nos trouxe até aqui.
A estratégia lulista já começa a ser explorada pela oposição. Ex-ministro de Bolsonaro, Ciro Nogueira (PP-PI) recorreu ao Twitter para comentar as recentes declarações do presidente. “Fala mal do ex, fala mal do teto, mal até do Alvorada, fala mal da Eletrobras, mal de empresários, mal dos juros, fala mal do BC. Governo é para fazer o bem e não para ficar falando mal. Um mês depois, o Brasil ainda aguarda a posse do novo governo”, afirmou. No fim de janeiro, o ex-presidente Michel Temer também reagiu após ser chamado de “golpista”, dizendo que Lula “parece insistir em manter os pés no palanque e os olhos no retrovisor”.
Sentimento antissistema
O cientista político Josué Medeiros, da UFRJ e do Núcleo de Estudos Sobre a Democracia Brasileira (Nudeb), avalia que o presidente mira um “sentimento antissistema” ao criticar a independência do Banco Central e deve seguir nessa linha. Medeiros vê dois movimentos: enquanto busca acenar à própria base ao atacar Bolsonaro e focar no discurso de que houve um golpe contra Dilma, Lula tenta atingir eleitores para além de sua bolha ao tratar o mercado como um empecilho, tema que ainda pode ser usado como desculpa caso não consiga entregar promessas de campanha:
— Bolsonaro foi eleito pegando o sentimento antissistema e o canalizando contra as instituições, o Congresso, os partidos, o STF. E tentou governar assim. Já Lula defende as instituições, mas sabe que o sentimento antissistema existe e não se anula após a vitória na eleição. Minha hipótese é que Lula também busca canalizar isso, mas contra o mercado, na ideia de que o mercado é insensível e não quer que a vida do povo melhore.
Já a cientista política Marcia Ribeiro Dias, da UniRio, não vê a continuidade de um discurso de campanha na retórica do presidente e destaca que há uma situação atípica com a invasão golpista de 8 de janeiro. A pesquisadora defende que as declarações sobre o Banco Central, por exemplo, expressam a busca de Lula por viabilizar promessas eleitorais.
— Qualquer governo começa e deixa para trás o anterior, até porque ele tem que imprimir a sua marca. A gestão atual, porém, é atípica porque se inicia com uma tentativa de golpe, capitaneada por apoiadores do antigo governo e com vistas a reverter o resultado legítimo das eleições. Por isso Lula se refere com tanta frequência à gestão anterior, até porque ele está enfrentando questões relacionadas a ela. É o caso da ação do garimpo no Território Yanomami, fruto do incentivo dado aos garimpeiros — pontua.
FONTE:O GLOBO
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