Desde outubro no comando da comissão econômica da ONU para a América Latina, o costa-riquenho José Manuel Salazar-Xirinachs diz que saída de estagnação exige ‘mudanças estruturais’ e que ‘não é hora de políticas tímidas’
Por André Duchiade
19/12/2022 04h30 Atualizado há 4 dias
Nomeado em outubro para a chefia da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), o economista costa-riquenho José Manuel Salazar-Xirinachs olha para a estagnação na região com grande preocupação. Para se contrapor ao desempenho pífio desde o fim do ciclo das commodities em 2014, o ex-ministro da Economia de seu país, que também trabalhou para a Organização dos Estados Americanos (OEA) e para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entende ser necessário apostar em “políticas setoriais agregadas”, nas quais o Estado trabalhe junto de universidades e centros de pesquisa para impulsionar toda a cadeia de valor, em setores como serviços na internet e algumas indústrias. Outras apostas são a melhora dos ambientes de negócios, para torná-los menos restritivos e mais abertos ao livre comércio, incluindo uma maior integração regional.
Nos últimos 10 anos, a América Latina teve um dos piores desempenhos econômicos entre todas as regiões do mundo. Por quê?
A década que termina em 2023 será mais perdida em termos de crescimento do que os anos 1980. Ali, falava-se de uma década perdida devido à crise da dívida , entre outras. O crescimento médio de toda a América Latina e do Caribe então foi de 2% em 10 anos. Se calcularmos o crescimento médio de 2014 a 2023 — ou seja, estamos no nono ano — será de apenas 0,8%. Já estamos no fim de uma década mais perdida do que a de 1980.
Mas por que o crescimento foi tão baixo?
Muito se deve a continuarmos com uma alta dependência de produtos primários nas exportações, que incluem os alimentos em países como Argentina e Brasil. Essa concentração das exportações nos torna voláteis e dependentes do ciclo das commodities. O principal fator que explica as altas taxas de crescimento do chamado ciclo de ouro, os primeiros 12 anos deste século, foi o boom econômico na China, que crescia a 9%, 10% ao ano. Mais de 60% do valor das exportações para a China se deve a quatro produtos: ferro, soja, cobre e petróleo. Isso dá uma ideia da concentração em alguns mercados e produtos. Aquele superciclo de commodities acabou em 2014.
Há algum exemplo na região considerado positivo?
Deve-se distinguir a América Central e o México da América do Sul. Os primeiros conseguiram se diversificar mais. Até por não terem os mesmos recursos naturais, precisaram se esforçar e ter produtos industriais. O México tem sido altamente integrado à economia americana, nas cadeias de suprimentos automotivos, de software aeroespacial, dispositivos médicos. A Costa Rica tem um grande setor de equipamentos médicos, que hoje representa um quarto das exportações. O país tem sucesso nos chamados serviços modernos exportados pela internet, que passam por uma explosão — muitos países, como o Uruguai, exploram isso.
E o que os governos devem fazer para aumentar a diversificação?
Primeiro, políticas transversais, tudo que melhora o clima de investimento, o crédito, o financiamento, a infraestrutura em geral. Também é muito importante fazer políticas verticais, políticas de cluster, isto é, apostas setoriais agregadas. A América Latina tem feito isso em alguns setores, mas de forma tímida. A Cepal fez uma lista de 10 setores impulsionadores. Se olharmos para a experiência do Japão, da Coreia, da China, as políticas de desenvolvimento produtivo têm se caracterizado por grandes esforços microeconômicos nas chamadas políticas de aglomeração, que promovem e ativam a ação de empresas de todos os portes, as grandes e as pequenas, nas cadeias produtivas, acionando as instituições públicas responsáveis por esse setor, e as acadêmicas, no campo da inovação e crescimento da produtividade. Esse é o novo paradigma, que a América Latina deve abraçar.
A última grande aposta desenvolvimentista no Brasil foi durante o governo de Dilma Rousseff, baseado num modelo de campeões nacionais. É considerado um grande fracasso. O que fazer diferente?
Não saberia dos detalhes do que pode ter dado errado. Há várias formas de fazer políticas setoriais. Por exemplo, como fez a Coreia, com campeões nacionais, um estilo de política setorial que aposta em financiar grandes empresas. A abordagem moderna é trabalhar com cadeias de suprimentos. É importante que as políticas venham acompanhadas de melhorias no ambiente geral, do tipo de acordos de livre comércio, do tipo de ambiente regulatório. Em ambientes muito restritivos, elas não têm o mesmo sucesso. Mas o Brasil tem setores de muito sucesso, o aeroespacial, o automotivo, a agricultura. É preciso olhar com atenção setor por setor para se ter lições.
Já passamos pelo pior da inflação na região?
O ponto de virada foi visto nos últimos três ou quatro meses. Vários produtos atingiram o pico e começaram a cair de preço. Não confunda: eles caem de preço, mas ainda estão mais caros do que antes da guerra [na Ucrânia] e da pandemia. Eu esperaria que no segundo trimestre, ou no meio do ano — e sem poder prever se haverá um cisne negro —, as taxas dos bancos centrais poderiam ser moderadas.
Há muito se fala em integração na América do Sul, mas pouco se avançou. Que passos tomar?
Isso é um sonho antigo, desde suas origens a Cepal prevê a integração regional. Infelizmente, a América Latina tendeu a se integrar mais com o lado de fora do que entre si. Se olharmos para o peso do comércio intrarregional, é uma das regiões mundiais com os indicadores mais baixos. Há dois tipos de agenda. Primeiro, os velhos temas, isto é, a integração física, via rodovias, pontes, ou mesmo ferrovias, qualquer coisa que transporte mercadorias de um país para outro. A América Central avançou mais nisso. Na América do Sul, o obstáculo principal é o tamanho. A França cabe seis vezes na Argentina, não sei quantas vezes no Brasil.
E a outra agenda?
Esta se refere aos desafios de integração do século 21. Há uma explosão no comércio de serviços em todo o mundo. Houve uma revolução tecnológica nos serviços, e muitas das empresas mais dinâmicas estão nesse setor. Essa revolução está permitindo que o comércio eletrônico se multiplique e, com a pandemia, houve uma migração maior. Com essa agenda, é necessário ser mais pragmático do que político. Os governos precisam criar políticas que incentivem as empresas a fazer comércio.
Como vê a eleição de governos de esquerda na região?
Não me parece casualidade a eleição de governos de esquerda, que enfatizam compromissos sociais, a redução da desigualdade e assinalam que os pactos sociais estão fraturados e a economia não está funcionando bem. Afinal, é isso que a cidadania deseja, empregos de qualidade, melhores salários, redução da pobreza, oportunidades de saúde e educação. É o sonho de todos os países: tornarem-se países de ingressos mais altos. Mas isso significa que esses governos têm um grande desafio. Exigem-se capacidades técnicas, operacionais e políticas nas instituições, requerem-se esquemas de boa governança, exige-se também dinheiro, e agora existem governos com restrições fiscais apertadas. E aqui o importante que temos dito é que não é hora de políticas tímidas, de gradualismo. O ideal seria que os países pudessem pactuar grandes transformações estruturais, cuja lista é muito clara: desenvolvimento produtivo, redução da desigualdade, redução da pobreza, combate ao apagão da educação. É importante estar ciente de que a América Latina enfrenta uma situação muito difícil, e tentar promover mudanças realmente estruturais.
Os países desenvolvidos apostam em uma mudança de paradigma, baseada na transição energética como impulsionadora do crescimento. Quais oportunidades há para a região nessa seara?
Sendo uma região de tanta biodiversidade, deveríamos ter como prioridade cuidar dessa grande riqueza ambiental. Além disso, há duas ações. Uma é difundir e aplicar as novas tecnologias que foram desenvolvidas na Europa, na China, nos EUA. Mas também há muito potencial para a indústria regional inovar e produzir dentro desse paradigma tecnológico, ter fabricação própria, investimentos próprios em pesquisa e desenvolvimento, adequados às condições da região. Em termos de gestão da água, de a reciclagem, da economia circular.
FONTE: O GLOBO
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