Produto será vendido a R$ 8 o pacote de 2 kg, com logotipo da Conab e a inscrição: ‘Arroz adquirido pelo governo federal’; alvo de críticas, iniciativa foi tomada após as inundações no Rio Grande do Sul
Por Mariana Carneiro e Isadora Duarte (Broadcast) 27/05/2024 | 19h47 Atualização: 27/05/2024 | 20h48
BRASÍLIA – O governo Lula trava uma queda de braço com produtores, beneficiadores e vendedores de arroz após decidir importar 1 milhão de toneladas do grão para vender diretamente em supermercados e redes de atacado de alimentos do País. A iniciativa foi tomada como resposta às inundações no Rio Grande do Sul, mas empresários e especialistas veem intervenção no mercado pelo governo federal, que passará a ter um rótulo próprio na prateleira com preço tabelado.
A operação é inédita, ou seja, é a primeira vez que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) realiza a operação completa: da importação à distribuição. Tradicionalmente, a estatal faz recomposição de estoques públicos e regulação de preço mínimo de garantia ao produtor a partir de leilões em que vende produtos subsidiados para agentes privados da cadeia da indústria alimentícia.
Dessa vez, além da importação, será a primeira vez que o governo venderá um produto com a sua logomarca na embalagem. O arroz importado deverá ser embalado no país de origem, pelo fornecedor, com o rótulo que diz “Arroz adquirido pelo governo federal” e que leva o logotipo da Conab.
O volume representa cerca de 10% do consumo anual do Brasil – estimado em 10,5 milhões de toneladas – ou pouco mais de dois meses da venda nos supermercados.
O produto será destinado à venda direta para mercados de vizinhança, supermercados, hipermercados, atacarejos e estabelecimentos comerciais com “ampla rede de pontos de venda nas regiões metropolitanas”. Esses estabelecimentos comerciais deverão vender o arroz exclusivamente para o consumidor final ao preço de R$ 8 por pacote de dois quilos.
Uma medida provisória editada no último dia 10 limitava a venda a pequenos estabelecimentos e uma portaria divulgada quatro dias depois estabelecia que esses comércios deveriam ter no máximo cinco caixas. Alertado da complexidade de a distribuição estatal chegar a mercadinhos, o governo decidiu ampliar a lista para as grandes redes, que comprarão o arroz por meio de leilões de venda organizados pela Conab.
A venda direta terá como foco o comércio em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Pará e Bahia. O governo alegou que as regiões foram escolhidas com base nos indicadores de insegurança nutricional e alimentar, mas estes são também os maiores mercados consumidores do País.
O governo argumenta que empresários ao longo da cadeia produtiva se aproveitaram do momento de crise no Rio Grande do Sul para subir o preço do grão, o que foi acelerado por uma onda de fake news nas redes sociais dando conta de uma escassez do produto – o Estado gaúcho é o maior produtor de arroz do País, responsável por 70% do abastecimento nacional.
“É legítima a preocupação dos produtores de arroz (com a importação) que não querem achatamento dos preços que a importação pode causar, mas também é legítima a posição do governo de evitar especulação, subir de 25% a 40% preço do arroz em poucos dias é desrespeito à população brasileira”, disse o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, em audiência na Câmara dos Deputados na semana passada.
“Bastou o governo editar a compra de arroz e os preços subiram de 8% a 40% em alguns casos. Isso é aproveitar a calamidade e o governo vai coibir isso com muito rigor”, acrescentou.
Receita ‘estranha’
Sócio da MB Agro, José Carlos Hausknecht afirma que a operação, além de colocar o governo numa seara nova de distribuição de arroz, está sendo feita no auge da colheita.
Quase toda a safra gaúcha foi colhida (85%) e o problema é de logística, não de falta de produto, alega ele. Além de correr o risco de não dar certo pelo ineditismo e falta de expertise do governo em operar a venda direta ao consumidor final, a estratégia pode desestimular o plantio da nova safra de arroz.
“É uma política estranha, não foi feita para regular o estoque, mas para abastecer o mercado”, diz Hausknecht. “Se faltar arroz no Brasil, a indústria vai buscar, não vejo necessidade de o governo entrar nisso”.
Ele afirma que foi acertada a decisão de baixar as tarifas de importação de países para além do Mercosul, o que pode favorecer a entrada do produto asiático, por exemplo. Mas diz que levará meses até que esse arroz chegue efetivamente ao consumidor. Até lá, ele prevê que o mercado se ajuste entre oferta e demanda.
“É um intervencionismo. Entendo que o governo esteja preocupado com a inflação, mas não é justificável. Vai colocar produto novo agora, no auge da safra, enquanto há outros Estados capazes de abastecer o mercado. É uma política que outros países latinos como a Argentina já tentaram e que nunca deu certo”.
Para o diretor da Wedekin Consultores e ex-secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura de 2003 a 2006, Ivan Wedekin, o governo não possui capacidade operacional, como o setor privado, de realizar a operação completa.
“O governo não vai conseguir acessar facilmente essa compra de 1 milhão de toneladas ou seja de 100 mil toneladas, porque esse arroz não está na prateleira do mercado. Além disso, a política de venda direta foi abandonada há muito tempo, com os agentes privados operando o leilão”, analisou o ex-secretário. “O governo vai transplantar ineficiência”.
Wedekin considera também que haverá impacto inflacionário da medida no preço do arroz, porque sinaliza ao mercado que um novo player irá adquirir volume expressivo. “O governo está interferindo de forma truculenta no funcionamento do mercado, que está equilibrado do ponto de vista estrutural. Isso vai afetar o mercado, o preço internacional até o produto chegar aqui”, avaliou Wedekin.
“Como o governo não tem capacidade de realizar a compra e a distribuição eficientes, isso vai aumentar a especulação e não terá resultado concreto no balanço de oferta e demanda”, acrescentou.
Segundo o consultor, o Brasil possui arroz suficiente para atender ao consumo nacional, mesmo que as perdas das lavouras gaúchas ainda não tenham sido quantificadas. “A melhor política do governo neste momento seria deixar o mercado funcionar.”
O que dizem os setores
Na última semana, produtores se reuniram com representantes dos ministérios da Agricultura, Desenvolvimento Agrário e Conab para discutir a política e tentar demover o governo da ideia.
O pleito foi levado pela Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz), Federação das Cooperativas de Arroz do Rio Grande do Sul (Fearroz) e pelo Sindicato da Indústria do Arroz no Estado do Rio Grande do Sul (Sindiarroz) ao ministro da Agricultura, Carlos Fávaro.
As entidades pediram o cancelamento da iniciativa e a revisão da isenção da tarifa de importação do arroz, criando uma cota de 100 mil toneladas até meados de outubro.
“Solicitamos novamente a não intervenção do governo no mercado. Já explicamos que o que ocorre são problemas logísticos e de emissão de nota fiscal e não de oferta de arroz, pois o que houve foi um gargalo momentâneo”, disse o presidente da Federarroz, Alexandre Velho. “A tendência é que em 30 dias as condições para o abastecimento de arroz estejam normalizadas. Não existe necessidade de importação para volume indefinido”.
Entre as justificativas, os arrozeiros argumentam que a oferta pelo governo de arroz a R$ 4 por quilo está descasada do mercado mundial e do preço médio do produto de R$ 5/kg a R$ 6/kg. “Isso vai trazer desestímulo ao produtor para manter área de produção com preços abaixo do custo de produção e voltaremos a diminuir área plantada, o que foi a tônica durante nos últimos dez anos com dependência do mercado externo”, afirmou o presidente da Federarroz.
Fávaro disse ao setor arrozeiro que é uma determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva manter a estabilidade de preços neste momento.
O assunto, porém, tende a colocar o governo em rota de colisão com o agronegócio, setor que já é refratário a Lula e às políticas do PT.
Presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR) criticou a decisão do Executivo de importar até 1 milhão de toneladas de arroz pela Conab.
“É um grande equívoco. Temos estoques suficientes e conseguimos trabalhar com esse número”, argumentou Lupion.
Segundo ele, a preocupação do setor produtivo é que essa autorização para entrada de arroz a preço menor possa prejudicar os produtores. “Na diversificação de culturas da próxima safra, acho que será importante outros Estados aumentarem a produção de arroz e pensar neste momento de dificuldade com atender a defasagem da safra do Rio Grande do Sul”, observou Lupion.
“Por enquanto, o abastecimento à avicultura e suinocultura do Paraná está sob controle, mesmo com as grandes dificuldades dos cerealistas gaúchos”, disse ele, exemplificando a cadeia de proteína animal do seu Estado-natal.
Diante do impasse e com aumento de preços nos países do Mercosul, antevendo a demanda extra do Brasil, o governo adiou a realização do leilão de importação da Conab.
Até então, os produtores acreditavam que o governo voltaria atrás na decisão da venda direta, mas a publicação de uma segunda medida provisória na sexta-feira, 24, prevendo mais R$ 6,7 bilhões para a iniciativa, enterrou a expectativa.
No total, o governo federal prevê gastar com a medida R$ 7,2 bilhões em recursos orçamentários, derivados de crédito extraordinário (recursos que não interferem nas metas fiscais mas aumentam a dívida pública).
Após reunião com Lula no Palácio do Planalto, Fávaro afirmou que o leilão deve sair nos próximos dias, após a publicação de uma nova portaria com regras para a venda do arroz.
Diretor presidente da Conab, Edegar Pretto, justificou a medida em razão do momento excepcional de dificuldades para o escoamento da safra gaúcha e dos impactos das enchentes na safra a ser colhida e no arroz armazenado em silos.
“A importação é para garantir que as regiões distantes dos polos produtores não fiquem desabastecidas e evitar especulação do preço do arroz ao consumidor, de forma escalonada”, disse Pretto ao Estadão/Broadcast.
Ele afirma que a empresa pública irá adquirir o grão conforme a necessidade de frear especulação e até a normalização do escoamento do arroz gaúcho.
“A Conab está retomando as políticas públicas, as quais são sua obrigação cumpri-las e garantir o abastecimento dos alimentos estratégicos para a população”, acrescentou.
De acordo com Pretto, apesar de ainda não ter a informação do valor que comprará o arroz importado, a Conab vai garantir que o produto chegue ao consumidor final a R$ 4 o quilo. A estatal fará a subvenção, ou seja, arcará com a diferença entre o preço comprado e o valor final comercializado ao consumidor.
“Precisamos garantir acesso do arroz a população, pois não é possível ter arroz a R$ 7/kg já no fim da safra. O arroz terá o preço final e a logomarca do governo porque precisamos identificar ao consumidor que esse arroz é específico com preço tabelado e que ninguém possa especular o cereal comprado com dinheiro público”, disse Pretto.
Em nota, a Conab afirmou que a importação de arroz é “uma decisão emergencial para aplacar distorções, aumento de preços e temores da falta do produto ocasionadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul”.
“A Conab está autorizada a fazer venda direta porque a intenção é chegar aos pequenos varejistas que teriam dificuldade de participar do leilão. A partir do início da tragédia climática no Rio Grande do Sul, o preço do arroz cresceu até 30% em relação ao período anterior, em que pese a safra estar sendo colhida, o que representa um grande volume de arroz estocado, não justifica a elevação dos preços nesse patamar”, diz a nota.
Publicado no Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO – ESTADÃO
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