26/02/2021 • 16:34
A forma mais comum de avaliar o progresso econômico de determinado país é calculando o seu Produto Interno Bruto (PIB). Embora o avanço econômico seja importante e, em muitas ocasiões, venha associado a uma melhora correspondente na qualidade de vida das pessoas, é importante ter em mente que é possível que progresso econômico e qualidade de vida divirjam. Exatamente por isso, os meios de vida não devem ser tomados como um ponto final na investigação da qualidade de vida.
Tendo presente essa observação, em 1990, foi lançado o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que é a medida das realizações médias em três dimensões: (i) saúde (expectativa de vida); (ii) educação (média de anos de estudo); e (iii) renda (PIB per capita). Também aqui, porém, o índice não reflete aspectos como desigualdade, qualidade da educação, segurança humana e impactos ambientais. Há um exemplo dado por Achim Steiner, administrador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que ilustra a incompletude da medida: um vazamento de óleo em larga escala pode revelar-se positivo para o crescimento econômico, porque sua limpeza exige vultosos recursos financeiros, que são contabilizados no PIB, mas a destruição causada pelo vazamento a comunidades, à natureza e ao ecossistema como um todo não seria contemplada.
Ainda na questão ambiental, conforme reconhecido no relatório do Desenvolvimento Humano de 2020 da ONU, “nenhum país no mundo alcançou índices de desenvolvimento humano elevados sem exercer uma forte pressão sobre o planeta”. Inclusive, o relatório adota um índice experimental que ajusta o cálculo de IDH às emissões de gás carbônico e à pegada material dos países. Quando aplicado, mais de 50 países saem da faixa “muito alto” do IDH, refletindo a sua dependência em combustíveis fósseis e pegadas materiais (veja aqui). É tempo de nos darmos conta desse fato.
Nesse cenário, há um terceiro índice que pode ser usado para medir o efetivo progresso de um país: o Índice de Progresso Social (IPS), criado por economistas do Massachusetts Institute of Technology e de Harvard. O índice agrega 50 indicadores sociais e ambientais de 163 países e atribui uma pontuação de 0 a 100 (sendo 100 a melhor). São medidos aspectos desde saúde, nutrição e acesso à água e saneamento, a aspectos de acesso ao conhecimento, qualidade do meio ambiente e garantias de direitos individuais, liberdade pessoal e autonomia.
O objetivo do IPS é mostrar como países convertem avanço econômico em mudanças sociais efetivas. Desde 2011, a variação no índice caiu em 12.3%, o que sugere que os países em desenvolvimento estão se aproximando dos países desenvolvidos — com as taxas de convergência maiores do que no PIB per capita (veja aqui).
O IPS de 2020 revelou outros dados importantes. Antes de analisá-los, vale a ressalva de que os índices são anteriores à pandemia, e Michael Green, o CEO do grupo, prevê impacto particularmente elevado sobre os Estados Unidos e o Brasil. De todo modo, os dados já contam uma história que vale ser conhecida.
Em primeiro lugar, no geral, o mundo está melhorando, com as principais evoluções nas áreas de acesso à informação e comunicação, acesso à educação avançada, moradia, água e saneamento. Não obstante, a proteção a direitos individuais — direitos políticos, liberdade de expressão, liberdade de religião, acesso à justiça e direito de propriedade para as mulheres — vem caindo desde 2011. No mesmo sentido, a inclusividade — que mede igualdade de poder político por posição socioeconômica, grupo social e gênero, bem como discriminação e violência contra minorias e aceitação de gays e lésbicas — também caiu. A qualidade ambiental e a segurança pessoal, por sua vez, estagnaram. A qualidade ambiental, vale dizer, é o componente medido em que o mundo tem o pior desempenho relativo à renda — ou seja, onde recursos financeiros não se traduzem em melhora correspondente no índice de qualidade ambiental.
Especificamente quanto ao Brasil: o país, ao lado dos Estados Unidos e da Hungria, são os únicos que caíram na pontuação geral do Índice de Progresso Social entre 2011 e 2020, enquanto 155 países (95%) melhoraram em um ponto ou mais. Entre 2011 e 2020, o Brasil caiu de uma pontuação total de 74,12 para 73,91 pontos — o que representou uma queda da 45ª posição para a 61ª posição no ranking global. Uma das principais áreas de piora foi a de segurança pessoal, tendo havido um aumento na violência física cometida por agentes estatais, na percepção de criminalidade e nos índices de homicídio.
Chama a atenção também a piora do país na igualdade de acesso à educação de qualidade, que é medido em uma escala de 0 a 4, na qual 0 representa desigualdade extrema e 4 representa igualdade absoluta: nesse quesito, o país regrediu de 1,26 para 0,72, e ocupa a 157a posição mundial. Ainda no tema educação, o Brasil está em 11º lugar no ranking no quesito qualidade de universidades, mas em 95º no quesito acesso a conhecimento básico, que mede matrícula em escolas primárias, escolaridade secundária, igualdade no acesso à educação de qualidade e desigualdade de gênero na escolaridade secundária.
O índice de corrupção também piorou e o país agora ocupa a 105a posição no ranking global. Quanto à liberdade de expressão e censura da mídia, também houve piora relevante e o país agora está em 109 e 120 no ranking global nesses quesitos, respectivamente. Também houve queda drástica nos índices que medem igualdade de poder político por posição socioeconômica (140ª posição no ranking mundial), por grupo social (82ª posição) e por gênero (115ª posição), além de discriminação e violência contra minorias (120ª posição mundial).
Embora o PIB per capita brasileiro, quando medido em dólar, também tenha piorado nesse período — de USD 13.245,61 em 2011 e de USD 8.717,18 em 2019, segundo dados do Banco Mundial —, o IDH brasileiro subiu de 0,731 para 0,765, segundo dados da ONU. Há, portanto, uma história fundamental que se desenrola à margem dos critérios do IDH — e também do PIB, apesar da coincidência no caso do Brasil atualmente. É certo que as formas de medir alguns dos aspectos e até mesmo a sua inclusão no cálculo do índice podem ser questionados. O debate sobre o que efetivamente representa bem-estar e qualidade de vida é complexo. Mas conhecer esses dados é fundamental para entender onde moram os nossos principais problemas e orientar políticas públicas eficientes, para garantir um crescimento responsável, sustentável e inclusivo.
*Luna van Brussel Barroso é mestranda em Direito Público na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Fundação Getúlio Vargas – Rio. Foi visiting student na Harvard Law School e é advogada na área de Direito Público.
Publicado em O GLOBO
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