Durante um mês, o Fantástico investigou acusações de prefeituras que usam parte do dinheiro público para tudo, menos para o bem dos cidadãos.
Um prefeito construía uma pista de pouso exclusiva para o amigo fazendeiro. Outro queria agradar a amiga e teria mandado reformar a casa dela. E há aquele que pintou a cidade inteira com as cores da campanha dele. E tudo isso foi feito com dinheiro público.
Até onde pode chegar a ousadia de um político? A reportagem especial deste domingo (4) mostra de tudo: um prefeito investigado pelo Ministério Público por construir pista para aviões em uma propriedade particular e outro que, segundo a Procuradoria-Geral de Justiça, reformou a casa de uma amiga, usando verba e funcionário da prefeitura.
Vamos mostrar mais uma denúncia com condenação na Justiça: dinheiro público para pintar uma cidade com a cor da campanha eleitoral do prefeito. Outro é acusado pela Procuradoria-Geral de comprar cabeças de gado para a própria fazenda com o dinheiro da prefeitura.
Mais ainda: o Ministério Público acusa o prefeito de uma cidade pequena – hoje, deputado federal – de comprar gasolina e diesel suficientes para dar nove voltas ao redor da Terra.
Durante um mês, em quatro estados do país, as equipes do Fantástico investigaram acusações de prefeituras que usam parte do dinheiro público para tudo, menos para o bem dos cidadãos. São casos bizarros, que poderiam ser vistos como simples folclore, se não fossem tão graves.
Uma obra está em andamento, e dois promotores de Justiça, que filmam tudo, ficam indignados. “Cidadão precisando de recurso para necessidade básica. Isso aqui é um absurdo”, comenta um deles.
O flagrante, de setembro passado, é em uma fazenda de Torixoréu, em Mato Grosso, que tem quatro mil habitantes e uma renda familiar média de R$ 513 por mês.
Na propriedade particular, observamos dois caminhões da prefeitura. No local, os funcionários do município constroem uma pista para aviões. São 1,3 mil metros, segundo o Ministério Público. É quase o mesmo comprimento da pista principal do Aeroporto Santos Dumont, no Rio, um dos mais importantes do país. “A prefeitura fazendo aeroporto para um fazendeiro. Não existe esse negócio de você fazer serviço para particular”, declara o promotor.
As máquinas foram emprestadas pelo governo do estado com uma finalidade: manutenção de estradas. E o prefeito não poderia ceder o equipamento a terceiros. “Ele usou do bem público para fins particulares, o que é terminantemente vedado pela lei”, afirma o promotor de justiça Mauro Poderoso.
Nem o fazendeiro Valmir Pereira, nem o prefeito Maximo Rodrigues dos Santos, conhecido como Maximo Barriga, quiseram gravar entrevista. O prefeito disse, em nota, que “houve uma parceria”. O município construiria a pista de pouso, e o fazendeiro, que também é empresário, recuperaria estradas e máquinas da prefeitura. Falamos com Maximo Barriga por telefone.
Fantástico: O senhor continua fazendo serviço na fazenda ou parou?
Maximo Barriga: Não. Naquela fazenda, parou, mas continuo fazendo em outras fazendas.
Sem saber que era gravado, o diretor de obras de Torixoréu revela.
Fantástico: É normal liberar esse tipo de obra aqui?
Diretor de obras de Torixoréu: É. O prefeito fala, e a gente vai fazendo. Tem vez que você faz coisas que você sabe que está errado, mas é mandado.
As irregularidades dos prefeitos foram analisadas pelo economista Marcos Fernandes, da Fundação Getúlio Vargas, a partir de dados da Controladoria-Geral da União. “Em média, 33% dos municípios, independentemente da região ou estado, apresentam algum tipo de irregularidade no uso das verbas”, aponta o especialista.
Para mostrar outro gasto, tão suspeito quanto folclórico, viajamos até Carmolândia, Tocantins, que tem 2,3 mil habitantes. Ano passado, João Holanda Leite, conhecido como Bogó, ficou um mês preso e, agora, aguarda o julgamento em liberdade, mas fora do cargo. Segundo a Procuradoria-Geral de Justiça, o político usou o dinheiro da prefeitura até para comprar gado para a fazenda dele.
João Holanda Leite, prefeito afastado de Carmolândia: A gente faz as coisas tentando acertar. Não é que a gente erra porque quer errar.
Fantástico: Então, foi sem querer que o senhor desviou dinheiro?
João Holanda Leite, prefeito afastado de Carmolândia: Eu não desviei dinheiro. Tenho a consciência limpa que eu não fiz isso.
“Ele desviou R$ 1,086 milhão do município que recebe apenas R$ 3 milhões por ano do Fundo de Participação dos Municípios”, aponta Clenan Renaut de Melo Pereira, procurador-geral de Justiça do Tocantins.
Em cidades pequenas como Carmolândia, o caixa da prefeitura é mantido, principalmente, com dinheiro do Fundo de Participação dos Municípios, que é repassado pelo Governo Federal.
Dos 139 municípios do Tocantins, 79, mais da metade, têm prefeitos investigados ou já processados pela Justiça. E foi nesse estado que o Fantástico encontrou uma denúncia bem pitoresca, envolvendo dinheiro dos cidadãos.
No dia 15 de julho de 2009, uma quarta-feira pela manhã, o então promotor da cidade de Colméia, Airton Amílcar, estava procurando uma casa para alugar. Parou em frente a uma que estava em obras. O pedreiro, sem saber que estava conversando com um promotor, acabou contando que estava a serviço do prefeito de Itaporã, cidade que fica a cerca de 30 quilômetros de Colméia, para fazer uma reforma na casa de Alessandra Barbosa da Silva, amiga do prefeito.
A Procuradoria-Geral de Justiça diz que havia intimidade entre o prefeito e essa amiga e denunciou os dois à Justiça por uso indevido de serviço público.
Alessandra, que teria mudado de cidade, não foi localizada. O prefeito Jonas Carrilho Rosa, que administra uma cidade de 2,4 mil habitantes, disse que foi só um favor que o pedreiro fez, fora do horário de trabalho.
Jonas Carrilho Rosa, prefeito de Itaporã do Tocantins: No dia que ele estava trabalhando para mim, não era um dia que ele estava trabalhando para a prefeitura.
Fantástico: Não é constrangedor passar por uma situação dessas?
Jonas Carrilho Rosa, prefeito de Itaporã do Tocantins: Eu diria para você que é constrangedor quando se deve, quando não se deve, não é constrangedor.
As denúncias atingem também cidades maiores, como Poá, na Grande São Paulo, com 106 mil habitantes. No local, o problema não foi a reforma de uma casa só. O Ministério Público acusa Francisco Pereira de Souza, o prefeito Testinha, de usar dinheiro público para deixar boa parte da cidade com a cor da campanha eleitoral dele: laranja. São uniformes escolares, secretarias. Nem o cemitério escapou.
A cidade está sendo repintada, como, por exemplo, a entrada de um centro esportivo, mas, em alguns pontos, dá para perceber que o serviço não terminou ou simplesmente mal começou, como em um portão em que ainda predomina a cor preferida do prefeito.
A Justiça de Poá determinou a cassação de Testinha e a devolução do dinheiro gasto com a tinta. “Eles se esquecem que o bem que está ali é público”, afirma a promotora de Justiça Karina Scutti Santos.
A prefeitura de Poá disse que já recorreu e aguarda as decisões. E que os equipamentos públicos, entre eles, o cemitério, foram repintados com dinheiro do prefeito.
Outro caso, que até parece folclore, está na Bahia. Em Luís Eduardo Magalhães, 60 mil habitantes, uma matemática que não fecha foi denunciada à Justiça do estado em 2005 e aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Na época, a prefeitura, que administrava o município de 23 mil habitantes, fechou contrato para pagar 15 mil litros de gasolina e 20 mil litros de óleo diesel em apenas um mês. Um gasto considerado espantoso pelo Ministério Público da Bahia que fez as contas. Com tanto combustível, dizem promotores, os carros da prefeitura conseguiriam rodar cerca de 360 mil quilômetros. Essa distância equivale a quase nove voltas ao redor do planeta ou uma ida à lua.
O prefeito, na época, era Oziel Oliveira que, hoje, é deputado federal. Ao longo de duas semanas de tentativas, ele não nos atendeu. Em nota, Oziel atribuiu as denúncias a adversários políticos. Disse que as despesas da prefeitura foram aprovadas pelo Tribunal de Contas e que as providências legais para comprovar que não houve dano ao patrimônio público já estão sendo tomadas.
A Controladoria-Geral da União diz que os mecanismos de fiscalização estão sendo reforçados. “Lugar de gestor corrupto é na cadeia”, afirma o ministro-chefe da CGU, Jorge Hage.
Para o ministro-chefe da controladoria, a lentidão da Justiça corre a favor dos suspeitos. “Um bom escritório de advocacia não deixa o processo chegar ao fim em menos de 10 ou 20 anos, e os corruptos são os que podem pagar os melhores escritórios de advocacia”, declara Hage.
A procuradora Janeci Ascari faz parte de um grupo do Ministério Público Federal que apura desvio de verbas federais em prefeituras. Ela diz que há muito trabalho a ser feito: “O Ministério Público já ofereceu mais de 90 denúncias, e temos mais de 200 investigações ainda em andamento. Há um descaso generalizado com a coisa pública, com o dinheiro público”.
“Esse dinheiro saiu do meu bolso, do bolso do meu filho, do vizinho e do outro. Então, esse dinheiro é nosso. Quem pegou, tem que devolver”, declara a comerciante Maria do Socorro.
Fonte: G1
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