Por Malu Gaspar
24/08/2023 04h30 Atualizado há 21 horas
Foi concluído no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta semana, longe dos olhos do público e da TV Justiça, um julgamento simbólico. Tratava-se de decidir se os juízes, incluindo os próprios ministros do STF, são obrigados a se declarar impedidos de julgar casos de clientes dos escritórios de advocacia de seus parentes, mesmo quando a causa é defendida por outro escritório.
Para que fique claro: o artigo do Código de Processo Civil (CPC) que diz que ministros não podem julgar processos em que seus parentes advogam continua valendo. A dúvida ali era sobre um outro trecho que o Congresso incluiu no código em 2016, estendendo o rol dos impedimentos.
Um exemplo desse tipo de situação ficou famoso em 2017, quando o ministro Gilmar Mendes mandou libertar o empresário Eike Batista, que estava preso por corrupção ativa na Lava-Jato. Eike era cliente do escritório da mulher de Gilmar, Guiomar, mas naquela ação específica os advogados eram outros.
Em tese, a regra estava em vigor, por isso o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu a anulação da liminar de Gilmar. O ministro respondeu que não havia impedimento algum. A ministra Cármen Lúcia, a quem coube avaliar o pedido, só veio a negá-lo em 2018, quando já fazia um ano que Eike estava solto. (Ele ainda viria a ser preso de novo em 2019.)
Pois bem. Na segunda-feira, o Supremo seguiu a “jurisprudência” de Gilmar e enterrou a regra por 7 votos a 4.
Pode parecer uma discussão lateral. Mas os conflitos de interesses são um problema tão antigo quanto fundamental para a saúde da democracia.
Não foi outro o motivo que levou Lula a ser processado pelas palestras que dava a soldo de empreiteiras e multinacionais — quem podia garantir que não havia ali um pagamento disfarçado por medidas de seu governo?
A mesma régua serviu para mandar por água abaixo a credibilidade da Lava-Jato, quando se descobriu que procuradores e juízes trocavam informações por baixo dos panos, ou se verificou que o irmão de um procurador advogava para réus da operação.
Quando discussões assim relevantes acabam no Supremo, ele costuma arbitrá-las em sessões transmitidas ao vivo pela TV e pela internet, com votos longos e rebuscados.
Mas, quando se trata de impor limites a si próprios, os ministros mudam de atitude. O julgamento desta semana se deu no plenário virtual, onde os votos não são lidos ou discutidos, apenas publicados no site da Corte. Dos 11 ministros, cinco entregaram votos escritos. Os outros seis apenas deram um clique acompanhando os colegas.
Consultados, a Câmara dos Deputados, o Senado, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República foram a favor de manter a regra.
Quem foi contra — a Associação dos Magistrados do Brasil, que a contestou, e Gilmar Mendes, que redigiu um voto de 15 páginas — não questionou o mérito do impedimento. Preferiu apelar para uma questão prática: afirmar que a regra fere o princípio da razoabilidade. Seria impossível de fiscalizar, já que não há como um ministro conhecer de antemão todos os clientes de seus parentes.
O argumento até poderia fazer sentido, se não houvesse formas de pesquisa virtual ou mesmo a alternativa de dar um prazo para os escritórios que atuam numa causa apontarem impedimentos dos adversários — uma das propostas para dar consistência à norma, do ministro Luís Roberto Barroso, solenemente ignorada.
Embora a controvérsia esteja no Supremo desde 2018, o que houve foi um debate ligeiro e envergonhado sobre um assunto que paira como sombra sobre o Judiciário brasileiro. Quem acompanha os bastidores das cortes está cansado de ouvir histórias de suspeitas envolvendo a atuação de escritórios de advocacia mantidos por filhos, mulheres, irmãos e sobrinhos de magistrados.
Vários ministros cobram — e bem — para dar palestras em eventos jurídicos ou contratados por empresas. Mas, sempre que questionados, se recusam a confirmar se cobraram para falar e em nenhuma hipótese revelam seus cachês.
Eventos jurídicos com patrocínio em que magistrados confraternizam com gente que depende de suas decisões já não causam espanto. No julgamento desta semana, seis dos que votaram pelo fim do impedimento têm parentes com escritórios e causas no Supremo: Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Kassio Nunes Marques e Dias Toffoli.
No recém-lançado livro “O Supremo: entre o Direito e a política”, o professor de Direito Constitucional Diego Werneck Arguelhes diz que a legitimidade dos juízes depende de eles convencerem uns aos outros e a própria sociedade de que aquilo que decidem “não vem da sua cabeça, mas deriva do Direito vigente”. No Brasil, porém, o Supremo impõe limites às outras instituições, mas ninguém impõe limites ao Supremo.
FONTE: O GLOBO
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