Dois acontecimentos recentes prometem entrar para a história da nossa democracia: a entrada em vigor, no dia 27 de maio, da Lei da Transparência e a aprovação no Congresso Nacional do Projeto Ficha Limpa.
A Lei da Transparência, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro e sancionada pelo presidente Lula no ano passado, aperfeiçoa a Lei de Responsabilidade Fiscal, obrigando entidades e órgãos públicos — federais, estaduais e municipais — a divulgar em tempo real todas as informações referentes a receitas e despesas realizadas com dinheiro público. Por definição, os recursos geridos pelo Estado pertencem ao povo, o que significa não apenas que eles devem ser aplicados para o bem do povo, mas, também, que é aos cidadãos que se deve prestar contas de sua utilização.
Não se pode falar em cidadania plena se o caixa do Tesouro é tratado pelos governantes como uma caixa-preta. É verdade que, nos últimos anos, os atos dos poderes públicos, inclusive os financeiros, tornaram-se mais transparentes. O maior exemplo disso é o Portal da Transparência, mantido pela Controladoria-Geral da União, que disponibiliza na internet toda a movimentação financeira do Poder Executivo federal. Também ocorreram avanços na divulgação dos gastos efetuados pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, e diversos estados e municípios tomaram a iniciativa de montar os seus portais na internet.
Agora, porém, a questão não depende mais da vontade dos chefes do Executivo ou dos membros do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público; agora, a transparência é imposição legal. Bem-entendido, todas as informações divulgadas devem ser fornecidas de forma clara, objetiva e em linguagem acessível a todo e qualquer cidadão medianamente instruído.
Por sua vez, o Ficha Limpa impede que pessoas condenadas em órgãos colegiados do Judiciário possam concorrer a cargos eletivos. Esse novo diploma legal contribui para a implementação de um princípio que podemos chamar de “segurança eleitoral”, uma vez que elimina o risco de que sejam eleitas pessoas com problemas na Justiça.
Anteriormente, ficavam inelegíveis somente os condenados por crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o mercado financeiro e o sistema eleitoral; a partir de agora, será possível barrar a candidatura de condenados por uma série de outros crimes, como os de corrupção e homicídio e os crimes que atentem contra o meio ambiente e a saúde pública, entre outros. O período de inelegibilidade, que antes variava de 3 a 8 anos, foi unificado em oito anos; além disso, um político que renuncie ao mandato, com vistas a escapar da cassação, não poderá mais concorrer nas eleições seguintes.
A importância do Ficha Limpa, entretanto, transcende essas novas regras. Sua verdadeira dimensão histórica advém do fato de que ele é fruto de uma poderosa mobilização da sociedade brasileira, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que faz parte da mesma linhagem das lutas pelas Diretas-Já e do movimento pró-impeachment do ex-presidente Collor. Aqueles dois movimentos estavam associados, respectivamente, ao restabelecimento da democracia e à sua consolidação. Já o Ficha Limpa visa ao aperfeiçoamento republicano de nossa democracia. É preciso que sua aplicação se dê a partir das eleições deste ano e que abranja também as condenações já ocorridas, em vez de apenas aquelas que venham ocorrer a partir de agora.
A rigorosa demarcação entre a esfera pública e a esfera privada é a pedra de toque da República e da democracia. O cidadão investido na condição de agente público, por meio de eleição, concurso ou livre nomeação, é um guardião da coisa pública, não seu proprietário. O início da vigência da Lei da Transparência e a transformação do Ficha Limpa em lei contribuem para o fortalecimento do controle dos cidadãos sobre autoridades e instituições públicas e para o aprimoramento da atividade política com vistas ao bem comum. Por tudo isso, essas são medidas especiais, que certamente farão avançar nossa democracia.
Autor: Rodrigo Rollemberg
Correio Braziliense
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